Sueli, Sueli, nome de ocidental, nome besta esse, gostava mais do meu nome antigo, lá do Japão, Futami, isso sim, nome de gente como eu, mas há tanto tempo me chamam Sueli que até tinha esquecido, e então, lá do Japão a voz, a voz de mais de cinqüenta anos atrás, ainda bonita, no tremor de velho, velha estou eu, puxa vida, dona Sueli, não, dona Futami, setenta e sete anos, sim, no mês que vem, setenta e sete anos, e a voz que veio do Japão, semana que vem, é, semana que vem vou estar no Brasil, o português meio trôpego, mas inteligível, poderíamos nos encontrar, quem sabe, senhora Futami, um jantar, sim, um jantar, e agora ela estava ali, naquele restaurante no bairro da Liberdade, ela não morava na Liberdade, ela morava no Jardim da Saúde, mas estava ali, na Liberdade, à mesa do restaurante, mais de trinta anos não ia a um restaurante chique como esse, e então ela pensou, tudo na minha vida se passou há mais de trinta anos, e eu aqui, nesse restaurante japonês no bairro da Liberdade, não, não era mentira, e ali estava o homem que amara em 1947 e que tivera que ir embora de repente do Brasil, tinha só vinte anos, ele um pouco mais velho, vinte e cinco, um pouco mais, um pouco menos, que importa, juravam amor eterno, juravam nunca se separar, naquele mesmo bairro da Liberdade, eu te amo, Futami, ele dizia e nunca, nunca vou te deixar, e um dia ele foi embora, ele foi obrigado a ir embora, partiu numa madrugada, como um ladrão saindo pela janela, ele foi embora, uma sombra fugitiva, sem falar nada para ninguém, só ela sabia que ele ia embora, ele tinha de ir embora, ainda se escreveram durante um tempo, mas as cartas semanais viraram mensais e um dia ela percebeu que não iam chegar mais, e já se tinham passado vários anos e ela nem notou que ele não escrevia mais, sempre relendo as velhas cartas lá do Japão e então, uma nova bomba de Hiroshima não caiu em Hiroshima, caiu na minha vida, ele se casou, alguém que veio do Japão falou assim, sem mais nem menos, no meio de uma conversa boba de quem chega e tem novidades para contar, e agora ela observa o senhor grisalho e sorridente ali sentado, o presente é sonho, o passado não passou, tudo sonho, e de repente ela olha para ele e vê uma sombra, uma sombra medonha de ódio e vingança, foi por causa dessa sombra que ele foi embora, foi por causa do ódio que ele foi embora, foi por medo de uma vingança terrível que ele foi embora, eu nunca entendi direito por quê, mas ele teve de ir embora, aquele senhor sorridente a chama de senhora Futami, que me chama de Futami, sim, sim, nunca me casei, nunca tive outros homens, Futami ficou te esperando, meu amor, ela não diz, ela só pensa em dizer meu amor, um casal estranho naquele ambiente de jovens, todos tão respeitosos, mas nós somos velhos, velhos como a sombra de uma vingança terrível que ela nunca, eu nunca, jamais consegui entender, um casal, naquele restaurante japonês, um casal de velhos, e ele sorri um sorriso que podia ser de esperança, mas eles são apenas um casal de velhos, e ele conta coisas do passado, de como encontrou a pátria destruída, de como trabalhou tanto e de como prosperou nesses cinquenta anos, e ele fala de um Japão tão moderno, tão bonito, que ela não conhece, fala da mulher que morreu, dos netos que estudam tecnologias que ela não entende, e ele fala de computadores que ela não sabe bem o que são, há mais de cinquenta anos eu vivo te esperando, meu amor, e ele come com elegância e a serve, não tenho fome, meu amor, e ele parece tão jovem, não tem uma só ruga, não tem dente amarelo, não tem cabeça branca, suas mãos estão limpas e lindas e lisas, o tempo não passou, passou apenas uma sombra, e ela olha com amor aquele jovem de vinte e cinco anos e então uma sombra, uma sombra terrível que matou toda a sua esperança de vida está ali, atrás dele, a sombra ainda ali, é apenas uma sombra mas está ali, a sombra da Shindô Remei.(*)
15 de nov. de 2022
UMA TRISTE SOMBRA ESPREITA, NUM RESTAURANTE JAPONÊS DO BAIRRO DA LIBERDADE, SÃO PAULO, BRASIL, 2002
Nota:
(*) A Shindô Remei foi uma organização surgida nas comunidades de imigrantes japoneses e nikkeis no interior de São Paulo durante a Segunda Guerra Mundial. A Shindô Remei recusou-se a aceitar a derrota militar do Japão e cometeu uma série de homicídios e atentados, após a guerra, contra membros da sua própria comunidade acusados de "derrotistas", por terem aceito o fato da derrota militar japonesa.
4.9.2002
(Ilustração: Kitagawa Utamaro - 1754-1806)
(Você pode ouvir esse conto, na voz do autor, neste link de spotfi:
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