Uma tarde, atravessando a praça da Sé, driblando as barracas de tem-de-tudo e a fumaça e o cheiro dos churrasquinhos-de-matar-o-guarda, e os cantos imundos de urina, e o bodum de creolina, e o azedo do suor de quem batalhou o dia inteiro, e o perfume barato das prostitutas, e a água velva dos barbeiros de rua, e a brilhantina mais barata ainda dos almofadinhas que pregam o evangelho, e os incensos florais dos falsos místicos, e as mostardas e ketchups das barracas de cachorro-quente-com-duas-salsichas-a-cinquenta-centavos, e a fumaça de ônibus, e a gasolina dos automóveis, indo em direção à Liberdade, vi, no marco zero da cidade o olho imenso da metrópole a acompanhar meus passos e me detive a contemplar o inequívoco pesadelo de meus sentidos em meio à algaravia que de repente emudeceu e a cidade que era cheiro, luz, movimento, de repente estancou como num filme que você deu pause no videocassete e, no silêncio de cemitério que então se seguiu, eu fiquei ali olhando aquele olho que me olhava e só olhava como se não me visse e eu sabia que estava me vendo como eu estava vendo a íris imensa a abrir-se e fechar-se como uma lente louca de máquina fotográfica dos paparazzi a tirar fotos da morte da princesa Diana da Inglaterra, mas eu sabia que não estava em Paris, estava na praça da Sé em São Paulo e aquele olho do marco zero era o olho de São Paulo, não era o olho de Paris ou de Londres ou de qualquer outra cidade, e eu fiquei ali a perguntar-me de mim para mim mesmo o que queria aquele olho estranho, bem no meio da praça suja e fedorenta, com todo mundo transformado em estátua, até mesmo as fumacinhas das barracas de churrasco e cachorro-quente pareciam paradas, imóveis, pesadas, densas em suas cores cinza e a catedral, ao fundo, parecia apenas uma fantasmagórica aparição com suas torres imensas e vazias dentro do silêncio de profundezas, e eu ali a olhar aquele olho que me olhava e eu olhava para mim, beliscava-me para ver se estava acordado e estava acordado, só a cidade parecia dormir num sono profundo de bêbado e aquele olho parecia querer dizer-me apenas que a cidade estava ali, a cidade estava atenta a tudo e eu era o seu profeta e eu não queria ser profeta de porra nenhuma, então eu saí correndo em direção ao metrô e quando o túnel engoliu o trem e me jogou dentro de mim mesmo eu vi que a cidade estava em cada pedra e em cada olho de cada passageiro, numa tristeza que dava dó e eu chorei.
22.9.97
(Ilustração: Praça da Sé - São Paulo: marco zero; foto de Vinicius Lomaski)
(Você pode ouvir essa crônica, na voz do autor, no podcast indicado acima à direita)
A Praça da Sé está uma tristeza de dar dó e sair dali chorando mesmo! Políticos desgraçados que permitem o albergue a céu aberto onde moradores de rua estão misturados com bandidos e os assaltos acontecem próximo da base policial. Tudo isso no marco zero da cidade. Parabéns Prefeitura de S.P.!!! São Paulo com tantas terras permitir isso ali é mesmo uma falta de autoridade e o fim! Parabéns poeta por esse texto!
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