20 de mar. de 2011

ASSOMBRO




(Felix Nussbaum)





Não, não era uma visão aterradora o cemitério à frente da estrada
por onde andava em sonho como se acordado estivesse.
Logo depois da colina, a curva do caminho
desbravava em baixo, à esquerda, a visão
de um campo imenso de cruzes brancas, muitas, muitas cruzes.
Aproximei-me curioso.
O vento soprava do norte e balançava algumas poucas árvores
quer cercavam o imenso gramado verde com cruzes brancas.
E, como era dia, uma coruja cinza era um bolo de penas
sobre uma das cruzes, fincada numa só perna, a cabeça entre as asas.
A grama fofa afundava sob meus pés.
O cheiro dos cravos confundia-se com o cheiro de terra molhada –
havia chovido um pouco, recentemente – e tudo era
muito, muito patético: eu, ali, no meio daquele campo verde
cercado de cruzes brancas, totalmente nu,
sim, eu estava nu como vim ao mundo
e essa nudez em vez de me incomodar trazia-me
um grande conforto, o conforto da liberdade.
Caminhei por entre as cruzes brancas naquele campo verde.
Caminhei por muito, muito tempo, lendo os epitáfios
e os nomes dos que ali residiam definitivamente.
Havia nomes de muitas nacionalidades, mas predominavam
os sons rascantes da língua alemã em contraste
com a sonoridade grega de tempos remotos,
mas havia franceses, ingleses, noruegueses,
e até mesmo brasileiros (poucos) e estadunidenses (ainda menos, sei lá por quê!)
e epitáfios, epitáfios jocosos, irônicos, vetustos e velhacos,
não os guardei na memória – nem os nomes, nem os epitáfios,
levados todos pelo vento que soprava do norte
e passava pela minha cabeça como borracha em caderno escrito a lápis.
Sei, e sei apenas porque há um esforço enorme de vencer o vento,
que eram nomes e epitáfios de velhos filósofos e filósofos novos,
e todos eles ali, mortos, mortos como sempre estiveram em vida,
grudados todos – tanto em vida quanto agora, mortos – às velhas
manhas da metafísica, aos pensamentos abstratos da razão impura,
aos tratos da imponderabilidade, aos interlúdios de pensamentos
conexos e desconexos, de concavidades e obtusidades,
presos para sempre na vã escola dos que creem mais do que veem.
E eu estava ali, naquele campo verde de cruzes brancas, a contemplar
- nu e feliz, feliz, de cabelos ao vento – aquelas campas mal encobertas
de grama fofa, quando o vento trouxe a mensagem, a mensagem
ouvida apenas por meus pensamentos, numa voz clara e pacientemente
monótona e repetitiva, a mensagem que me encheu de alegria e que dizia:
- estão mortos, estão todos mortos, estão mortos os filósofos todos –
e a voz dentro de mim gargalhava, um estrondo ribombando em câmera lenta,
e repetia, e repetia a mensagem:- estão todos mortos, todos mortos,
estão mortos todos os filósofos – e a voz em êxtase ribombava em câmera lenta:
- ressuscitai, ressuscitemos todos, agora mesmo, ó vós todos que me escutais,
ressuscitai, de vossos recônditos ressuscitai! Se estão mortos
todos, todos os filósofos, ressuscitemos a boa e velha filosofia!

18 de mar. de 2011

Dinossauros








Há milhões de anos,
muitos antes dos dinossauros,
já o planeta se mudava
em quente e frio, em frio e quente,
e milhões de seres pereciam.

Mesmo na época em que caminhavam
quase solitários pela terra
os imensos dinossauros,
não estavam eles livres dos humores
desse planeta instável e mau humorado:
erupções vulcânicas, lagos ferventes,
terremotos e maremotos estremeciam
os frágeis continentes suspensos sobre os mares.

Assim vive em ciclos a terra:
fenômenos naturais criam e matam
milhões de criaturas, renovando a vida
em cada um de seus breves suspiros.

Dentro do espaço infinito,
um grão (talvez menos) de areia no cosmo.
Para nós, homens tão pequenos, falso paraíso
de imensas riquezas, de mares sem fim, de montanhas tão imensas.
Eis o planeta Terra, Gaia chamada, de água formada,
embelezada por rios, lagos, montanhas, mares, animais
e, entre tanta vida e tanto mistério, o homem, o mais frágil.

Não, não é o homem nem mais frágil nem mais forte:
ei-lo apenas como o único que pode,
em gestos tresloucados,
destruir ou salvar esse mundo tão imenso e, ele sim, tão frágil,
tão desprotegido e, ao mesmo tempo, tão medonho e desconhecido.

Dinossauros seremos, sem pegadas a marcar o tempo de nossa existência,
se, sem pensar no futuro, destruirmos o presente.



(Ilustração: Alfred Stevens - pinotora na praia)


(Você pode ouvir esse poema na voz do autor, no podcast indicado acima à direita)

16 de mar. de 2011

todas as palavras já foram ditas



(Aaron Coberly)


todas as palavras já foram ditas
todos os gestos já foram esboçados
contenha no peito o soluço
e congele no ar o gesto
- seja ele qual for – de condescendência
ou de condenação
será inútil o pranto que vertermos
há noites de lua e noites de breu
vivemos agora o nosso ocaso
não deixe que tudo se perca
por uma palavra que não podia ser dita
por um gesto que não estava programado
o tempo aos desgostos dá novos contornos
e faz nascer perspectivas inusitadas
de brigas antigas e desafeições inúteis
guarde, guarde, enfim, seus gestos
sufoque, sufoque, enfim, suas palavras
o silêncio e a quietude devem permear
nossos últimos momentos juntos
sem adeuses, sem lágrimas, sem futuros




terça-feira, 20 de fevereiro de 2001

12 de mar. de 2011

dia seguinte (ou a tarde do mesmo dia?)

(Andrea Kemp - I spy)


dia seguinte (ou a tarde do mesmo dia?)
o poeta revê o que escreveu na madrugada bêbada
e avalia sua obra
e acha que está direito tudo
que está direita toda a loucura
que não devia mudar uma só vírgula
que era aquilo mesmo que ele devia dizer ou escrever
que tudo está nos conformes de seus sentimentos
e vendo que sua obra é boa
dá uma banana para deus (foda-se, deus!)
e fica muito satisfeito consigo mesmo
(mas não descansa, não: escreve outros loucos versos e poemas
e, além disso corrige e reescreve vários versos,
inclusive esse mesmo poema que não tem
fim, fim, fim...)



quarta-feira, 3 de janeiro de 2001(aí pela tarde...)

10 de mar. de 2011

a república



(Andrea Kemp)




soprava sempre o vento na mesma direção
e os cheiros de miséria provocavam rinites alérgicas
nas mesas de mansões do morumbi
gatos e cães desafiavam o poder
lambendo botas e saltos altos por sob toalhas de linho
e o vento sempre sempre a soprar
sempre a soprar na mesma direção
o sol que brilhava na república nunca era o mesmo
ora olhava o vento que soprava na mesma direção
ora soltava faíscas na prataria da casa grande
dos novos engenhos dos engenheiros do dólar
e mesmo que alguém dissesse que o sol era injusto
não parava ele para pensar no assunto
no meio do lixo até o bife podre pode parecer apetecível
antes que ratos e baratas o tomem
no meio da merda até coliformes fecais são artigos de luxo
quando o vento sopra sempre na mesma direção
e a república torce o nariz sem sentir a rinite de seus pares mais ricos
o ar esnobe da república é assim mesmo
porque ela estudou na sorbonne e um dia foi exilada política


domingo, 11 de fevereiro de 2001



8 de mar. de 2011

luar sobre a cidade

(Bill Feigenbaum)


havia uma lua no alto do prédio vizinho
a cidade dormia
não seus habitantes
ratos e restos rastejantes roíam o contorno da lua
engendravam maquinações e crimes
sonhavam fortunas e assaltos a bancos
dominavam os nervos com ervas e pós
tremiam ódios e invejas nas mãos de cravos e calos
olhos e brilhos de faca
olhos e tiros de metralhadora
olhos e manchas por todos os cantos
os poros em crateras transmudados
nos porões e recantos
os dentes a esmigalhar crânios
as mãos de anseios a enforcar o caos
o medo
o medo
o medo
e a lua brilhava no alto como um poema parnasiano



domingo, 11 de fevereiro de 2001

6 de mar. de 2011

CHUVA

(Zach Ladner)






Lá fora, a chuva.
Dita assim, a cada dia,
Mil vezes repetida,
É só a vida
Ou má poesia?




(27.8.07)

2 de mar. de 2011

Trova - Risco no chão minha saudade



(Loic Allemand)






Risco no chão de minha saudade

O traço tosco de uma paixão:

Lanço a pedra e pulo casa a casa

Até chegar ao céu do teu coração.


(4.3.2009)