31 de mai. de 2021

une petite chanson française

 

 

escorrego os dedos pela tua pele

como corre o rio em seu leito

sorvo teu suspiro – oh ma belle

como o vento à vida está sujeito

 

somos na cama de brisa e lua

o caminhar do poeta pela rua

 

assobio uma canção de paris

cantas uma ária – e és feliz

 

toco as cordas dos teus desejos

medes em mim a extensão do tempo

e nossos corpos à mercê dos ensejos

evolam-se no gozo do rio e do vento

 



24.3.2021

(Ilustração: Marc Chagall - -Les amoureux en bleu - c.1930)

 

 

 

29 de mai. de 2021

uma tarde com william blake

 






despetala-se a rosa ao toque da taturana

abre-se a corola para colher o coleio

de oblíquas delícias em pelos urticantes

no centro a larva enfim borboleteia

o futuro ao bico de aves famintas

pássaros e fogo fundidos no gozo

no jardim do éden nos espreita

o poeta nu brincando de adão

com sua eva a fornicar na grama

teu cheiro enjoa no arrepio

da tarde que esquenta e se inflama

somos tu e eu no concerto da primavera

o espanto de amantes de outrora

que se beijam e se amam na espera

de que se transforme a nossa chama

na semente definitiva da aurora





26.11.2020

(Ilustração: William Blake: satã, amor, Adao e Eva)

27 de mai. de 2021

uma tarde com gilka machado


  

de tuas veias partiram teus versos para ouvidos infames

desejos de livres palavras de mulher

o amor por tempos imemoriais sufocado

agora em sonetos travestido e enredado

na trama de amores no canto de tantas outras antes de ti

sim – não foste a primeira

apenas tiveste a primazia dos ódios tropicais

 

se pobre a tua vida

de riquezas ornaste tua poesia

 

gestados os sentimentos todos

do fundo dos teus arrepios – proibidos e incompreendidos

tu – uma mulher entre falos flácidos de falocratas inúteis

tu – que não te viste nos espelhos de tuas curvas

tu – que te olhaste na retidão de varas e varões não santificados

para desespero dos impuros

tu – que não te banhaste nas águas sáficas de outros ardentes beijos

 

teus mistérios revelados na sombra de um quarto vazio

onde um poeta de tantos tempos depois sonha contigo

numa tarde de outono e de gloriosos pecados

a queimarem minha pele os teus versos ardidos

na certeza de tuas incertas incursões

 

se difícil a tua vida

de ouros e pedrarias ornaste a poesia

os versos que louvo agora

percorrendo em mim teus mistérios todos

teus mistérios nunca a todos revelados

- entreprometidos mistérios de tuas luas ocultas

na poeira de estrelas de nossos abismos entrelaçados


 

15.4.2021

(Ilustração: Gilka Machado - foto da internet, 

sem indicação de autoria)



 

25 de mai. de 2021

uma noite quase perfeita

 





lua cheia entre neblina

um piano suave em surdina

- antônio carlos jobim –

um bom livro – talvez incidente em antares

uma taça de vinho

- eu totalmente sozinho –



ainda não terminado o inverno

ainda não começada a primavera



o tempo – apenas uma doce espera –

mas a noite não está perfeita

há a sombra de uma saudade à espreita




5.9.2020

(Ilustração: Afshan C. Koya)


23 de mai. de 2021

um poema de amor

 



há rios que desaguam

em outros rios

há rios que desaguam

em largos mares

há rios que correm

subterrâneos

há rios que secam

na estiagem

mas o rio que corre

dentro de mim

deságua sempre

no rio dos olhos seus



11.12.2020

(Ilustração: Francesco Hayez - The Kiss)

21 de mai. de 2021

um abraço

 




depois de tanto tempo

o teu abraço

ali na rua - na tarde - ao vento

os teus braços enfim

apertam-me com carinho

e te aperto também – um laço

de ternura

como um pedacinho do bolo de aniversário

depois de tanto tempo o sabor

sim - um abraço

que degustei

com tesão e também com amor

um abraço

que por muito tempo esperei



20.4.2021

(Ilustração: Apollonia Saintclair - l'amour manque)

19 de mai. de 2021

último gozo

 








abraço o vazio do meu braço pensando em teu abraço

desejo uma gota de suor do calor do teu desejo

beijo o ar ao redor como se fosse o teu beijo

anseio por teu gozo tanto quanto por teu anseio

sonho por entrar mais uma vez no teu sonho

gozo enfim o instante fatal do teu último gozo




2.1.2021

(Ilustração: Edvard Munch - la jeune fille et la mort - 1894)


17 de mai. de 2021

último gole

 




bebe-se de tudo no cálice da vida

desde o cardo amargo das vicissitudes

até o alegre champanha das comemorações



espreme-se no copo o limão ou a laranja-lima

o doce vermute ou o ácido ananás

da água – o alívio da sede

da cachaça – o alívio do sono pesado



sorvemos o sal da angústia

e o açúcar do chocolate quente

ao paladar a língua se lambuza

de líquens e líquidos insensatos



de tudo se bebe no cálice da vida

e a tudo os líquidos nos levam

seja ao prazer ou ao desatino



acompanhado ou sozinho

a última gota despejada no meu cálice da vida

quero que tenha o sabor seco do vinho




10.5.2021

(Ilustração: foto de Chema Madoz)



15 de mai. de 2021

último estertor

 




perdidos no céu de chumbo

da mediocridade

marchamos no charco do sangue sujo

sujas as mãos

sujas as mentes

sujo o sexo



inseguros à luz da manhã de maio

no meio do mundo imundo

de pocilgas onde chafurdam generais

surdos ao som dos trovões no meio da tempestade

não há água de chuva ácida que lave

o sopro profundo dos pulmões vazios



sob a noite de pesadelos

são inúteis as canções guerreiras

os ventos que sopram queimam as bochechas

o ar pesado arromba os cérebros



não há na terra uma só trevo

não há nos rios uma só guelra

não há nos oceanos uma só água-viva



matamo-nos ao pé da couve envenenada

por um talo engasgado na garganta do tenor



há distorcidos arpejos de guitarras

mas ninguém tem ouvidos para ouvir



uivam os cães para seus donos

e a lua explode raios de beleza e morte



sai a serpente de sua toca

rastejam humanos em busca da luz



o charco podre come as solas dos pés de chumbo

e os oceanos escoam areias em ampulhetas quebradas



ouve o som

ouve o som dos passos do passado

ouve

ouve o grito que vem do passado

ouve

que o passado e seu grito serão teu último estertor




28.2.2021

(Ilustração: Aroldo Bonzagni)


13 de mai. de 2021

última caminhada

 




nos escaninhos de meu cérebro a lua minguante

conta os dias para a lua nova

sei que cada noite que desce me comprova

estar o tempo do fim cada vez menos distante

embora ainda haja dentro de mim

anseios de luas cheias e esperanças crescentes



mas a vida é assim

- o passado não alimenta dias presentes

e tudo quanto sonhamos termina

no passo trêfego rumo ao nada



que a luz que ainda nos ilumina

seja o farol da última caminhada

antes que a noite desça

antes que a lua nova apareça





26.11.2020

(Ilustração: Paul Klee - Love song by the new moon -1939)

9 de mai. de 2021

uivo

 




no meio da noite

que devia ter o breu de luas novas

uivo como cão sem dono

pelo ocaso do império das trevas

uivo

como todos os cães no medo da noite

não me recolho de rabo entre as pernas

uivo

cansado do espanto

cansado de mim

cansado do teu descaso

uivo

e no meu uivo o espasmo do universo

no canteiro de lantejoulas

uivo o meu protesto de vira-lata

ao som das patas dos cavalos

uivo

que venha a cavalaria e seus monstros

monstros vestidos de verde

para comer o verde

uivo – o meu uivo de insensatez

que me importa que

tremulem bandeiras negras

com ossos cruzados

que me importa seu brado de ódio

uivo

e meu uivo ultrapassa fronteiras

na dor das queimadas do pantanal

das queimadas da amazônia

das queimadas da mata atlântica

das queimadas do cerrado

das queimadas

das queimadas

das queimadas

que queima por dentro o meu uivo

por isso como onça ou cão vadio

eu uivo

e a lua negra choverá desgraças

sobre o pelo eriçado dos cães de caça

que sobre mim chovam os espinhos

da caatinga ou brometos de sódio

sou o uivo de deuses mortos

na noite escura dos ventos de morte

que soem as trombetas

meu uivo será mais forte

não teme a fera ferida de morte

que a firam de novo

uivo

e não choro o tempo exumado dos sepulcros

santos óleos exalam de meus poros

para queimar a chama que mata

teus ambíguos sinais estarão soterrados

sob a ruína de espantos e buracos negros

ouvirás por todo o teu tempo

o meu ruivo sangrento afinal

ouvirás o meu uivo maldição

para fazer ressurgir das cinzas

o tempo de teus martírios

e a chuva de mistérios que despenca

e continuará despencando

pelos rios e pelas florestas

essa chuva lavará e levará teus passos

e nada restará de ti

e das nuvens o novo tempo

esquecerá para sempre de ti

e não precisará mais

do meu

uivo



9.10.2020

(Ilustração: Jelly Green)



7 de mai. de 2021

tuas asas

 



ondeias teu corpo esguio pelo leito

como se fosses erguer tuas asas e voar

mas não tens asas – amada colhida no gesto perfeito

do meu espanto e do meu esgar



no gozo de ver-te assim entregue à luxúria de meu mais profundo desespero

sigo teus movimentos e busco no fundo dos teus olhos o tempero

- esse maligno tempero que me leva – eu o chumbo do teu riso –

suspenso nas águas paradas do lago como um redivivo narciso

e depois nas nuvens de fogo com que me abrasas

a fugir de mim mesmo como pena arrancada do teu dorso

anjo ou demônio em ti e contigo sobre a terra e sobre o mar

porque embora não tenhas tu mesma as tuas asas

emprestas-mas para que eu possa no teu gozo voar




4.4.2021

(John W. Russell; A Modern Fantasy, 1927)

5 de mai. de 2021

tua lua

 



vive uma lua entre tuas coxas

tem fases de rainha e de louca

desanda o leite quando orquídeas vermelhas

desaguam em minha boca

míngua o talo do girassol

quando espanta as abelhas

e balança o lençol ao sol exposto

no quaradouro da minha língua

faz crescer espantos à meia noite

quando aceita o açoite do vento

que varre como folhas de ouro

a serena agonia dos meus olhos trágicos

mas é quando renova tuas águas

entre as chamas de loucas fráguas

que tua lua esplende em gozos mágicos



13.7.2020

(Ilustração: Jeff Faerber)

3 de mai. de 2021

tua boceta

 





aprecio-te assim – delícia floresta de lobos famintos

no descansado intrincado de teus fios negros

que a exploração lânguida de línguas e dedos



despertará cheiros e sabores de lendas e descaminhos

quero-te e saboreio-te com líquens e temperos exóticos

fenda de promessas que cumpres com teus espasmos



quando em festa o teu mundo desvendo

pirata perdido nos teus rios e mares – navego

e fundeio o meu navio nos teus anseios



desprego das tuas dobras o sinete de ouro

para o canto de sereias que entretecem fios

e enredam-me os sentidos nos teus liames



fodo-te porque me pedes o gozo

mas ergo para ti altares de sacrifícios

e imolo-me aos teus sangues e aos teus fluidos



21.4.2021
(Ilustração: foto de Augusto P. Gomes)