no meio da noite
que devia ter o breu de luas novas
uivo como cão sem dono
pelo ocaso do império das trevas
uivo
como todos os cães no medo da noite
não me recolho de rabo entre as pernas
uivo
cansado do espanto
cansado de mim
cansado do teu descaso
uivo
e no meu uivo o espasmo do universo
no canteiro de lantejoulas
uivo o meu protesto de vira-lata
ao som das patas dos cavalos
uivo
que venha a cavalaria e seus monstros
monstros vestidos de verde
para comer o verde
uivo – o meu uivo de insensatez
que me importa que
tremulem bandeiras negras
com ossos cruzados
que me importa seu brado de ódio
uivo
e meu uivo ultrapassa fronteiras
na dor das queimadas do pantanal
das queimadas da amazônia
das queimadas da mata atlântica
das queimadas do cerrado
das queimadas
das queimadas
das queimadas
que queima por dentro o meu uivo
por isso como onça ou cão vadio
eu uivo
e a lua negra choverá desgraças
sobre o pelo eriçado dos cães de caça
que sobre mim chovam os espinhos
da caatinga ou brometos de sódio
sou o uivo de deuses mortos
na noite escura dos ventos de morte
que soem as trombetas
meu uivo será mais forte
não teme a fera ferida de morte
que a firam de novo
uivo
e não choro o tempo exumado dos sepulcros
santos óleos exalam de meus poros
para queimar a chama que mata
teus ambíguos sinais estarão soterrados
sob a ruína de espantos e buracos negros
ouvirás por todo o teu tempo
o meu ruivo sangrento afinal
ouvirás o meu uivo maldição
para fazer ressurgir das cinzas
o tempo de teus martírios
e a chuva de mistérios que despenca
e continuará despencando
pelos rios e pelas florestas
essa chuva lavará e levará teus passos
e nada restará de ti
e das nuvens o novo tempo
esquecerá para sempre de ti
e não precisará mais
do meu
uivo
9.10.2020
(Ilustração: Jelly Green)
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