9 de mai. de 2021

uivo

 




no meio da noite

que devia ter o breu de luas novas

uivo como cão sem dono

pelo ocaso do império das trevas

uivo

como todos os cães no medo da noite

não me recolho de rabo entre as pernas

uivo

cansado do espanto

cansado de mim

cansado do teu descaso

uivo

e no meu uivo o espasmo do universo

no canteiro de lantejoulas

uivo o meu protesto de vira-lata

ao som das patas dos cavalos

uivo

que venha a cavalaria e seus monstros

monstros vestidos de verde

para comer o verde

uivo – o meu uivo de insensatez

que me importa que

tremulem bandeiras negras

com ossos cruzados

que me importa seu brado de ódio

uivo

e meu uivo ultrapassa fronteiras

na dor das queimadas do pantanal

das queimadas da amazônia

das queimadas da mata atlântica

das queimadas do cerrado

das queimadas

das queimadas

das queimadas

que queima por dentro o meu uivo

por isso como onça ou cão vadio

eu uivo

e a lua negra choverá desgraças

sobre o pelo eriçado dos cães de caça

que sobre mim chovam os espinhos

da caatinga ou brometos de sódio

sou o uivo de deuses mortos

na noite escura dos ventos de morte

que soem as trombetas

meu uivo será mais forte

não teme a fera ferida de morte

que a firam de novo

uivo

e não choro o tempo exumado dos sepulcros

santos óleos exalam de meus poros

para queimar a chama que mata

teus ambíguos sinais estarão soterrados

sob a ruína de espantos e buracos negros

ouvirás por todo o teu tempo

o meu ruivo sangrento afinal

ouvirás o meu uivo maldição

para fazer ressurgir das cinzas

o tempo de teus martírios

e a chuva de mistérios que despenca

e continuará despencando

pelos rios e pelas florestas

essa chuva lavará e levará teus passos

e nada restará de ti

e das nuvens o novo tempo

esquecerá para sempre de ti

e não precisará mais

do meu

uivo



9.10.2020

(Ilustração: Jelly Green)



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