21 de jan. de 2016

vuelvo al sur




(Carybé)





deixo as savanas molhadas

e

vuelvo ao sur

ao teu sul

américa




deixo os desertos calientes

e

vuelvo ao sur

al sul

damérica





deixo os fiordes arrepiantes

e

vuelvo ao sur

al teu sul

sulamérica






deixo minha vida e meus traços

en el camino

deixo meus temores e danças

de otros momentos

para voltar para ti

minha latinoamérica del sur

e

vivo y revivo

amores e cores

platas y colores

vento en las ventanas

tangos y sambas

coches e vientos

piantao piantao

telúrico y bamba

nos morros e agrestes

largos sanfranciscos

buenos ventos

sampaolo y janeiro

carnaval e boi-bumbá

marajoaras de bombachas

leite derramado na mantiqueira

solamente por tí

en el sur

meu norte é aqui





deixo-me levar

al sur y volto e vuelvo

ao sul do teu norte

bajo muy bajo

teus tremores

trêmulas bandeiras






y vuelvo al sur

e volto a ti

américa minha

de desejos y desesperos

vuelvo al sur

surpresas de cavalo doido

amazonas de haute couture

libres las mulheres

livres los hombres

vuelvo de manhatans

para enfim el encuentro

de américas

del más profundo sul

sale de ti el tiempo

de cantar o sol

soledades de

américas y américas

uma só américa

del sur

do sul

sul

supremo silêncio

pois enfim

vuelvo ao sur






15.1.2016




19 de jan. de 2016

BREVIÁRIO DE AMOR


 *


(Taro Hata)




1



Só, solidão, só.

Louvo o louco louvar

de mim, a mim, para mim.

Amar!




2





Triste. Só.

O Vento... A Lua

tua!

Pele nua.




3



Som. Bach.

Sonho. Bar.

Louco, a desejar

somente amar!




4




Quero ficar

bêbedo,

para te amar

trêfego.




5



Folha, brisa, salto.

O sonho

voa mais alto.




6



Um. Dois. Três.

Nós: tu, um rebento e eu.

Sozinho. Mais uma vez.



7



Só. Na noite, um som.

Lembro-me, agora:

Foi tão bom.

Quem sabe, outrora?




8




Esquecer, quem há de?

Na noite, o caminho

é só de saudade.





9




Fogo? Era fátuo.

Amor?

Era falso e inócuo!

Agora é dor.














17 de jan. de 2016

tramas e urdiduras





(Andre Muller)



narrar não é preciso
é apenas necessário

não basta à vida
a vida vivida
só há plenitude
na vida narrada

como as contas
do rosário
entre os dedos do cristão
são os dias lembrados
gotas que escorrem
da memória
pelos olhos
pelos poros
pelos pés
que marcam no chão
a oração inútil
ao deus tempo
culto inconsútil
do próprio existir

tecem-se poemas
entretecidos à vida
tramas e urdiduras
cavando feridas
na pele e nos ossos
os caminhos traçados
inúteis trançados
nus os sentidos
nuas as entranhas

inúteis poemas
de estranhas penas
pensadas e sonhadas
vividas e inventadas
queridas e odiadas
sempre narradas
imprecisamente
necessariamente
narradas


26.12.2015


15 de jan. de 2016

OS PROFETAS



(Gustave Dore - paradise lost)



Miragens no deserto do pensamento humano:
deuses bailam na areia inóspita.
Fiel à aura de super-poderoso,
o deus dos cristãos dança uma salsa,
enquanto tenta puxar maomé e seus profetas
para debaixo de sua saia.
Os demais, júpiter à frente, buscam, desesperados,
um lugar na mente entorpecida pelo calor,
derretida pelos ventos, do caminheiro do deserto.

O caminheiro do deserto, no entanto, ajoelha-se,
depois se curva até o solo, nádegas ao sol,
ouvido ao vento, seca a boca,
e pragueja contra tantos deuses a competir
pela sua inconsciência.

O pensamento vaga em sonho.
O deus cristão não se contém e chuta a bunda do peregrino.
Maomé imita cachorro sob o seu manto
enquanto morde a perna de um dos profetas.
A areia do deserto queima e absorve
a urina quente de jeová, enquanto alá treme
de ódio e dor, com a bunda queimada pela sol.

São miragens do pensamento humano,
são miragens no deserto do pensamento humano.

Deuses antigos e deuses novos, todos tronchos e loucos,
a ferver de angústia e dor nas trevas da inconsistência.
Pedem profetas, alguns profetas a mais, para salvar
do calor do deserto suas palavras ocas.
Mas, não há mais profetas, estão todos mortos,
mortos e enterrados no deserto, ainda que
também deserta, a consciência humana pragueje
contra tantos anos de escravidão.




28.2.2007

13 de jan. de 2016

VIOLÊNCIA DO HOMEM





 (Zdzisław Beksiński)


Assisti há dias a um programa de televisão sobre a vida de Hosmany Ramos (*). Estudante de medicina, especializou-se em cirurgia plástica. Médico famoso e brilhante, conquistou a sociedade e começava a ganhar notoriedade. De repente, sua vida muda completamente e ele volta-se para o crime. Passa a assaltar e matar. Preso, não consegue explicar o motivo por que deixou uma trajetória que se vislumbrava brilhante, para dedicar-se à vida criminosa.

Por outro lado, comecei a pesquisar a vida de Carrol Lewis, autor de Alice no país das maravilhas. Filho de pastor, teve uma educação rígida. Professor emérito de matemática e lógica, fotógrafo e escritor brilhante, manteve com menininhas de dez, doze, treze anos sempre relações amistosas, fotografando-as, muitas vezes, nuas. Sua paixão foi Alice, filha de um pastor, seu amigo (**). Diz-se que chegou a pedir sua mão em casamento, mas teve negado o pedido. A mãe de Alice rasgou todas as cartas que ele escreveu para a menina. Morreu solteiro. Mas suas obras ficcionais e sua vida levam a muitas conjeturas sobre suas reais intenções com as amiguinhas que ele fotografava. Possivelmente, hoje seria tratado como pedófilo. Não se pode provar que sua pedofilia semi-enrustida o levasse a cometer qualquer ato libidinoso com as meninas. Só o que se pode conjeturar é que ele teve tudo para isso. O que o impediu?

A bíblia é um amontoado de histórias e causos exemplares. Ainda que lhe neguemos qualquer valor como documento (e à bíblia só se deve dar valor como histórias e lendas de um povo!), pode-se utilizar seus exemplos como ilustração de qualquer tese. Assim, temos o causo de Jó. Posto à prova pela divindade, a tudo resistiu com paciência e passividade. Como explicar a síndrome de Jó? Muito poucos que estivessem em seu lugar suportariam um décimo do que ele sofreu.

Casos da vida moderna. Um juiz de direito mata um advogado porque este abalroou seu automóvel na garagem do prédio onde ambos moravam. Crime por motivo fútil. Mas vem alguém e diz que é preciso buscar nas horas (sejam quantas forem) antecedentes da vida do assassino as causas para sua violência. O estrago no carro pode ter sido apenas a gota d’água. Mas quantos na mesma situação fariam o mesmo? Ou seja, se todo mundo que tem problemas ou uma série de dissabores sair matando o primeiro que lhe enche o balde, o mundo teria mais assassinos dos muitos que hoje tem. O Jó bíblico mataria?

Diante de uma situação em que um ser humano poderia matar outro, cada um terá reações diferentes. Muitos matarão. Mas muitos outros recolherão sua raiva, suas frustrações e respeitarão a vida. Por quê? Qual a regra e qual a exceção?

Acredito, em termos utópicos e absolutos, que o pior crime é tirar a vida de outro ser humano. A vida é o único bem que não pode e não deve ser tirado, por ser única e insubstituível.

Os homens criaram os deuses para tentar explicar o que era difícil de entender. Depois os deuses passaram a ter vida própria e passaram a julgar o homem, sempre pelas regras criadas pelo próprio homem. Por isso, na maioria dos casos, os deuses são violentos e sanguinários. Exigem sacrifícios e não admitem deslealdades. Punem com a morte os desvios de sua doutrina. Por outro lado, premiam o homem com a imortalidade. Assassinos e vítimas, todos têm uma alma imortal e, portanto, uma segunda chance. Tendo a vida eterna, seja ela no céu ou no inferno, há sempre uma segunda chance. E, para melhor confundir as idéias humanas, os deuses, muitas vezes, oferecem uma sacanagem suprema: a possibilidade do arrependimento e do perdão. Logo uma série de argumentos falaciosos e uma série de crenças absurdas passaram a constituir um conjunto de regras e sistemas ainda mais absurdos e falaciosos que o homem denominou religião. Religião que o religaria ao seio de um pretenso criador do qual ele, o homem, através de seus desvios de conduta (pecados) para com essa divindade, num certo momento afastou-se.

O veneno deísta inoculou na mente do homem a noção de que a vida humana, sempre precária, pode servir de moeda de troca diante da divindade. Não há morte, apenas passagem. Então, o crime de morte não deve ser encarado como algo assim tão grave.... É como roubar a carteira de alguém: pode-se obter outra. E perdão foi feito para se pedir... e obter! Desde que haja arrependimento!

Quando se acredita que a vida é única e insubstituível, que não há deus ou deuses que possam fazer renascer um ser sem vida, que não há nenhuma possibilidade de outra vida seja em que dimensão for, passa-se a ter em relação a si mesmo e ao outro uma postura completamente diferente da postura dos deístas de qualquer religião.

Mas, para chegar a isso, é preciso despir-se de todo e qualquer sentimento de “espiritualidade” e passar a ser cem por cento materialista. Uso o termo materialista por ausência de palavra melhor e para que, embora chocadas, as pessoas compreendam o que eu quero dizer. Ser materialista é acreditar que a vida é matéria e somente matéria. É não ter qualquer ilusão sobre vidas futuras, reencarnação, deus, deuses, deidades, espíritos, almas, céu ou inferno. É despir-se de todo e qualquer conceito religioso ou de qualquer filosofia utópica de permanência ou eternidade do homem. E isso é um exercício muito difícil, para muitas pessoas que, arraigadas a suas crenças, pensam ser o materialista um monstro a querer destruir o homem. Mas é justamente o contrário: ser materialista é querer construir um novo homem, muito mais humano e muito mais respeitador da vida que qualquer outro em toda a história. Um homem que não precisará de freios religiosos que se transformam em desculpas que justificam todas as ações criminosas.

Acredito, e isso é uma crença muito pessoal, que, dentro da cadeia evolutiva, quando o homem tomou consciência do primeiro crime contra um outro homem, isso deve ter disparado um mecanismo de sobrevivência que se instalou na sua mente: matar outro ser humano é atentar contra o futuro da raça. Mas o crime estava cometido e essa ação também incutiu no ser humano, através de algum circuito ou sinapse cerebral, ou em algum gene, ou em alguma fórmula advinda de uma série de complexos químicos que interferem no cérebro, a noção e a origem da violência como forma de autopreservação. Isso pode estar mais ou menos ativo em cada um, o que determina muitas vezes a sua trajetória de vida. Assim, gêmeos, que têm exatamente a mesma origem e vivem exatamente no mesmo ambiente, podem seguir caminhos opostos em relação à propensão para a violência. Por quê?

Porque há dois mecanismos em oposição dentro do homem: o instinto de sobrevivência da espécie (que condena a violência contra outro ser humano) e o instinto de autopreservação (que admite a violência contra outro ser humano e é diacronicamente observável através da história). Então, o homem precisa, para sufocar o instinto de autopreservação, criar salvaguardas éticas de tal potência, que anulem todo o seu deísmo e suas crenças ancestrais de crime e arrependimento, que são crenças, numa só palavra, salvacionistas.

Assim, quando um Hosmany Ramos parte para a vida de crimes injustificáveis, o que deve ter acontecido é que, num momento qualquer de sua vida, as salvaguardas éticas baixaram a guarda e o gene ou a sinapse ou o complexo químico da autopreservação assumiram o controle. Por outro lado, possivelmente essas mesmas salvaguardas éticas impediram que as pequenas taras de Carrol Lewis se transformassem em pedofilia e, até mesmo, em assassinato. Então, há seres humanos cujas salvaguardas éticas estão plenamente ativadas e outros em que estão “adormecidas” ou minimizadas, por um motivo qualquer. Como ser racional, no entanto, mesmo nos casos em que elas estejam enfraquecidas, se o homem se convence da univocidade e impossibilidade de substituição da vida humana, ele pode subjugar, com bastante possibilidade de sucesso, seus instintos assassinos, sem se tornar frustrado ou doente mentalmente. No entanto, e aí vai mais uma crítica muito pessoal ao deísmo, se ele subjuga seus instintos por motivos não-éticos, mas religiosos ou meramente sociais, isso pode torná-lo extremamente amargo e doente, por gerar frustrações que o levarão para outros caminhos igualmente perigosos de desvios de conduta. Os jós bíblicos são entes bastante raros e, possivelmente, também frustrados, se não desenvolverem como salvaguarda ética a noção de respeito total e absoluto à vida humana.

Esse tipo de raciocínio nos leva a alguns preceitos e mudanças de costumes fundamentais, para que o homem violento desenvolva em si salvaguardas éticas. Acredito que, ao adotar tal sistema racional de pensar e agir, o homem começará a tomar consciência de que ele é o deus criador de seu próprio destino e só depende dele dar o primeiro passo para assumir essa função. Para isso, ao tornar-se materialista deve:

  • defender a ideia de que um ser humano, em hipótese alguma, pode tirar a vida de outro ser humano; corolário: mesmo diante de um crime de morte, em qualquer circunstância, fica abolida a pena de morte;
  • lutar para que, diante de um crime de morte provado ou confessado, o ser humano que o tiver cometido deva ter uma pena mínima de, pelo menos, trinta anos de afastamento total de convivência da sociedade, sem qualquer possibilidade de diminuição dessa pena, sem qualquer privilégio, dentro de regime carcerário fechado, onde deverá passar por processo de reabilitação; diante disso, o julgamento do crime terá por finalidade apenas acrescentar mais anos a essa pena mínima, diante de fatos que comprovem ter sido ele cometido por motivos torpes etc.;
  • lutar contra a idéia de que o crime de morte possa ser tolerado ou que as penas para ele sejam abrandadas por legislações lenientes e coniventes com uma situação criada por crenças absurdas em arrependimento e perdão;
  • ser um ativista pelo desarmamento civil: um cidadão honesto e integrado na sociedade não precisa de armas para se defender, isso é função específica do estado, através de seus organismos competentes, cujo uso de armas também deve ter algum tipo de controle;
  • ser um pacifista: todas as guerras são injustas e não há conflito que não possa ser resolvido pela via diplomática;
  • ser um cidadão que lute pelo controle do estado por mecanismos cada vez mais aperfeiçoados, para evitar o surgimento de ditadores de qualquer espécie ou de líderes belicistas e expansionistas;
  • ser defensor da natureza, do ambiente e das reservas naturais da Terra, pois o futuro da humanidade está indissoluvelmente ligado à preservação do mundo em que vivemos;
  • incentivar e apoiar todo tipo de pesquisa científica que busque melhorar as condições de vida do homem, adotando, no entanto, postura crítica e ética frente a qualquer utilização de seus resultados que possa prejudicar o ambiente e o próprio homem.

Não é possível, claro, eliminar de vez a violência do homem, mas não custa, diante do fracasso do modelo deísta até hoje adotado pela humanidade, buscar novas utopias e tentar, assim, preservar a humanidade de seu maior flagelo. Acabar com a fome, a miséria e a desigualdade requer ações de natureza econômica e política, mas acabar com a violência, seja individual ou coletiva, requer um tremendo esforço de mudanças de paradigmas conceituais que eliminem ou diminuam drasticamente os sentimentos religiosos da mente humana, para que as salvaguardas éticas possam prevalecer. É uma utopia, mas uma utopia precisa de um primeiro passo para virar realidade. Quem se habilita?


(*) Linha Direta, Rede Globo, 25/09/03.
(**) Há uma hipótese recente que reabilitaria Lewis Carrol: sua paixão teria sido a mãe de Alice e o rompimento com a família teria sido a descoberta, pelo marido, de tal paixão.


3 de outubro de 2003
quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

12 de jan. de 2016

O fim dos deuses




(Zdzisław Beksiński)




Inventaram os homens o inferno


para dele trazerem os demônios da intolerância.


Vestidos em togas negras, com capuzes


de gelo, os novos avatares do ódio


chamam-se pastores, denominam-se papas,


descrevem-se como profetas, assinam seu vômito


como aiatolás ou monges, olham-nos com desprezo


como todos aqueles que comem deuses


e cagam regras dos céus em nome dos infernos.


São tenazes púrpuras suas mãos de ferro,


a cavar sepulturas para a gargalhada de Hades,


são grilhões de chumbo as palavras de ordem


que arrebentam os tímpanos dos bacantes


de suas orgias de destruição e morte.


Do inferno ao céu, a estrada permeia


o campo de vontades amarradas


a sacos de pancadas e vermes


e o tempo de fome e dor povoa


o pensamento de cada ser que por ela caminha.


O deus que habita a garganta rouca


dos homens de fé é o mesmo que ronda


o estrume de sangue na trilha da humanidade.


Construíram catedrais de ossos e tumbas


de ódio, para acolher a gargalhada dos deuses


que mentem e matam com a mesma cara


de cavalo doido perdido no pasto.


Matemo-los todos, matemos, matemos


os deuses dentro de nós e deixemos


que flua o sangue de homens e mulheres


mais puro que o ar da montanha pelas veias


livres de estúpidas palavras de ordem.


Céus e infernos se unam na fossa profunda


cheia de rancor e merda, para que ali se afoguem


satanás e gabriel, santos e pecadores, papas


e aiatolás, pastores e pais de santo, todos,


todos unidos pela língua de fogo de meu ódio.


Será, enfim, o dia do juízo final


não do homem a ser julgado


mas de todos os deuses enfim condenados


para sempre à eternidade do esquecimento.


s/d - 2015


11 de jan. de 2016

o som da Singer








o som da Singer ressoava sobre o assoalho

de tábuas podres da velha casa

abafando o grito dos grilos

e o compassado canto do pintassilgo




das rodas engrenadas da velha Singer

mágicos uniformes surgiam para me vestir

e cadernos e lápis para o colégio dos padres




o pontilhado da agulha ligeira da velha Singer

garantia no prato do almoço o bife solitário

a enfeitar o meu arroz com feijão




as linhas que a agulha ligava nos tecidos

que iam vestir corpos tão estranhos

também costuravam meu encanto

no vetusto cine municipal onde

a cada domingo o mocinho caía

nas armadilhas do bandido e

escapava da morte no último segundo




o som da Singer nas tábuas do assoalho podre

ainda ressoa

na minha cabeça não mais do que ecoa

no meu corpo

na minha mente

na minha lembrança

o sorriso de minha mãe

3.1.2016








9 de jan. de 2016

poeira do tempo



(Salvador Dalí)




nada é o que parece
nem as certezas são assim
absolutas
nós humanos só vemos
o que nossos sentidos
filtram ao nosso cérebro
e temos um cérebro
esperto como o diabo
que vive mentindo para nós

nada parece mais verdade
do que a verdade que não vemos
nem por isso a vida é sonho
nem por isso a vida é ilusão

se metemos pelas mãos
os nosso pés
somos sempre os primeiros
a colher da vida o real
não aquele que realmente há
mas aquele que percebemos

e isso basta
isso basta para que vivamos

o animal que habita em nós
adapta-se ao olho que vê
ao cheiro que sente
e ao duro chão em que caímos
e se ouvimos o nosso grito
basta que pensemos que seja
realmente o nosso grito

comamos o pêssego
ou chupemos a jabuticaba
gozemos o orgasmo
ou soframos o gelo do tempo
ou a brasa do deserto
somos o que diz a cada dia
cada gota de suor e vida
que passamos sobre a terra

parece que tudo é nada
e nada parece o que é
assim a vida - assim
mestra a vida no engodo
mestres nós os humanos
no sermos enganados
precários seres a rolar
na poeira do tempo
e na poeira do tempo
sempre a viver e sobreviver


17.9.2015

7 de jan. de 2016

não luto contra deus









não se travam guerras contra inimigos que não existem


minha luta sempre foi e sempre será


contra a estúpida ideia de que existe um deus


e contra todos os idiotas que constroem templos


onde existem altares para o sacrifício


da inteligência humana






deus é apenas a desculpa de cérebros doentes


para dominar a mente de outras pessoas






quando essa ideia - a estúpida ideia da existência de deus -


for varrida para sempre da memória humana


o ser humano se tornará livre para criar sua própria humanidade


sem necessidade de seres abjetos escondidos atrás de altares


e livros e imagens e rituais e todo o aparato de suas mentes medíocres


a soprarem em seus ouvidos crenças absurdas


que o escravizam






por isso não luto contra deus


nem jogo pedra em altares


espero que um dia esse deus que nunca existiu


pare de atormentar a cabeça dos seres humanos


deixe de existir na cabeça dos seres humanos


não mais sopre torpezas na cabeça dos seres humanos


e extinta para sempre a sua horrenda ideia


que veleje o ser humano por mares de menos ódios


que creia mais em si mesmo e se respeite


e torne a vida mais apreciável e menos angustiante


sem ameças de infernos e castigos


sem piras e sem altares


sem templos e catedrais


sem demônios e santos e anjos






também não precisará nunca mais o ser humano


de padres pastores aiatolás rabinos pais de santos


e tantos e tantos outros que cortejam o deus absurdo


que constroem piras e altares e templos e mansões


com o dinheiro do pão que surrupiam de sua mesa






o enterro de deus na mente da humanidade


será o espetáculo que abrirá as portas da liberdade


29.10.2015


6 de jan. de 2016

o que é um padre? - 2



(Paul Valéry - autorretrato)





um padre é aquele indivíduo


que estudou uma ciência absurda


chamada teologia;


aprendeu a fazer alguns gestos


que compõem uma cerimônia chamada missa;


decorou frases de um livro antigo


para falar sobre um falso deus pregado no madeiro


a seus fiéis;


estudou numa escola trancada


em longos anos de silêncio e sexo inter pares;


prometeu fidelidade ao papa e ao seu deus fustigado


diante de uma vida sem outra perspectiva;


um padre - coitado - sabe o que sente debaixo


daquela batina preta e sabe que um dia


pode até vestir uma batina vermelha,


mas será sempre um ser solitário dentro de qualquer cor;


um padre é só um indivíduo


que tem diante de si a eternidade vazia



sp/23.5.2015

5 de jan. de 2016

quando te despes




(Auguste Leroux)





quando te despes para mim bem devagar


anseio as brancas curvas do teu seio


e aprecio de tuas ancas o doce ondular




descobres sem pejo teu corpo esguio


e eu ladrão vagabundo pelo vão da porta espio


segundo a segundo esse lento desvelar




nesse instante para mim o que realmente importa


não é tua plena e deliciosa nudez


ou cada detalhe de teu corpo que me convida


a recolher em todo o meu desejo a altivez




nesse instante querida teu corpo nu e altivo


celebra o fato de que te amo e ainda estou vivo



22.12.2015

3 de jan. de 2016

pastiche




(Patrice Murciano)



não, não sei
se finjo o que sinto
ou sinto o que finjo

também não sei
se sou poeta porque fingidor
ou fingidor porque poeta

na dúvida
vou sentindo o que não finjo
vou fingindo o que não sinto

e então
vem o poeta e diz o que é ser fingidor
que devia eu fingir tão espetacularmente
que tudo que não fosse fingido teria sentido
e tudo que não tivesse sentido seria fingido

não, não tem sentido algum
não saber se finjo o que sinto
ou se sinto o que finjo

sei apenas que...

23.12.2015


2 de jan. de 2016

o baile






como um tango bem dançado

como um samba bem ritmado

como um bolero bem sincopado



senhoras e senhores

a dança da vida começou

escolham seus pares

escolham seus ritmos



valsa ou rock and roll

a orquestra há muito está no palco

e a vida rola pelo salão



baião ou xaxado

jazz ou mazurca

cada um escolhe sua música

e dança conforme toca

a grande orquestra do universo



não importa se dança sozinho

não importa se dança em quadrilha

não importa se dança de rosto colado

o baile não para e cada um

baila conforme o bater

de seu próprio coração





dancemos todos

amigos e inimigos

loucos de hospício

padres de sacristia

mendigos mal vestidos

princesas e atletas

políticos com pescadores

homem com homem

mulher com mulher

não importa o que há

debaixo de cada pano

é gente com gente

negros de pele luzidia

brancos da cor da neve

morenos e pardos

amarelos e corcundas

cientistas com surfistas

índios e musicistas

no baile dançam até

as rodas de uma cadeira

abraçam-se braços partidos

olham-se olhos que não veem

beijam-se bocas que não cantam

divertem-se até mesmo quem

sente só o pulsar o tambor

encontram-se os improváveis

os malditos e os heróis

quem nada tem para dizer

e boquirrotos de plantão

não há raças não há povos

não há tortos nem direitos

no grande baile da vida



como um tango sem pudor

como um samba requebrado

como um bolero recatado



senhores e senhoras

a orquestra não pode parar

e quem não dançar

a vida não viverá




9.12.2015
225.9.2017


(Ilustração: Auguste Renoir - le bal moulin galette)



(Ouça este poema na voz do autor acessando o podcast indicado em cima ao lado)