... reviro os bolsos, todos, da calça, do velho e puído paletó, da camisa, tiro até a cueca, me sinto um idiota ali parado no meio do quarto, nu, procurando o inefável, o que não podia ter perdido, o seu bilhete, aquele que daria um fim em minha vida de miserável e começaria uma nova trajetória, ora bolas, que besta, que fim que nada, que trajetória de vida ia eu querer com aquela bosta de bilhete, que não dizia nada, absolutamente nada, nem uma promessa, nem um desejo, apenas aquelas palavras secas, duras, sem pontuação, sem nenhuma emoção, que bobagem, agora estou querendo emoção em palavras de um simples bilhete, pego as roupas espalhadas pelo chão, levo-as até o banheiro e jogo tudo no cesto, continuo ali, pelado e pensando, pensando em como fui idiota, em como me deixei manipular, ando de um lado para o outro e de repente me vejo no espelho do guarda-roupas, ridículo, nu, barrigudo, pelancas por todo o corpo e eu choro, não sei por que eu choro ainda, tantas e tantas vezes eu choro por aquele maldito bilhete, aquelas palavras que não saem de minha cabeça, e a imagem do espelho treme quando eu abro a porta do velho armário, que range um pouco, e estala, e range e estala, e então o espelho se parte, em mil pedaços, e eu me contemplo em cada pedaço ali no chão, um olho, um joelho, a boca torta, o pé ferido com um pequeno caco do velho espelho multiplicado, a dor estampada em cada pedaço de mim, e eu penso como será complicado para eles juntar os cacos de um defunto nu, gordo e nu, velho e nu, e eu penso no tal bilhete que um dia ela deixou no bolso do meu velho e puído paletó, e eu lembro o bar, o velho bar do centro da cidade, a despedida, o chope, o chope que desceu amargo, o olho que só vê o velho paletó já meio puído na manga, o olho que olha em volta, meio tímido, meio envergonhado, e tudo ali é muito velho, os garçons são tão velhos quanto as paredes pintadas com gravuras da década de vinte, as cadeiras, até a comida deve ser a mesma que servia Oswald de Andrade e os modernistas quando aprontavam por ali, nas suas bebedeiras, e eu vejo a mim mesmo entre eles, refletido no espelho do velho bar, espelho que um dia um deles, talvez Oswald, Mário, quem sabe? ou até o velho maestro, um deles, um deles trincou ao lançar um copo, por quê? ninguém sabe, ninguém sabe nem de mim nem de outros como eu, velho e só, e ele, o espelho quebrado, ficou ali para sempre, testemunha de meu fracasso, e penso que estou ali naquele velho espelho, entre Oswaldo e Menotti, que estúpido, não sou tão velho, embora esconda as cãs num velho e sujo boné, então eu me lembro que ela havia deixado um bilhete, apenas um bilhete no bolso do velho e puído paletó, há quanto tempo mesmo? não sei, apenas a lembrança dela me afogueou o sexo, o plexo, a dor que subiu do ventre para a barriga e alcançou o coração, uma pontada, apenas uma pontada e a cabeça agora lateja, eu estou aqui, no velho, muito velho quarto da minha velha pensão de quinta, eu sei que não devia lembrar, eu sei que não devia estar chorando assim, no meio de tantos cacos de um espelho quebrado, mas o bilhete, o bilhete que eu trazia há mais de trinta anos no bolso de meu paletó, no bolso revirado do meu velho e inefável paletó puído...
(Ilustração: Britto Velho)
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