18 de dez. de 2022

poema-desabafo

 




qualifiquei-me para a vida quando nasci

com cabeça

tronco

e membros

e um cérebro que pensa

e um cérebro que sonha

e um cérebro que imagina e cria

a vida no entanto sempre me desqualificou

mesmo não sendo totalmente preto

[se o fosse seria muito pior]

mesmo tendo estudado em bom colégio

[não fosse isso o futuro seria futuro de preto]



mesmo tendo me formado numa grande universidade

[não fosse isso teria caído na fossa do subemprego]

a vida me desqualificou sempre mesmo assim

porque saí da pobreza e se a pobreza não saiu de mim

foi porque só ganhei o suficiente para viver

e não me curvei àquilo que acham que gente como eu deva ser



a sociedade branca e elitista não perdoa

quem ultrapassa linhas traçadas pela injustiça e pelo preconceito

mede-se a si mesma pela média da média da estupidez

e tem olhares de esguelha e desdém aos que deviam ser párias

não suporta – essa gente de nariz que não pode tomar chuva –

que alguém que não seja de suas hostes conviva no mesmo restaurante

se não for o atendente ou o garçom cheio de mesuras servis

médico ou professor – acinte total



enfim não basta que me qualificasse na vida

[e eu o fiz a duras penas – caminhando sempre com minhas próprias pernas]

era preciso ser humilde aos olhos dos bandidos engravatados

e não sujar com minha altivez de pobre impoluto

seus salões caiados de branco e ornados no mau gosto do ouro roubado

era preciso fingir não perceber o olhar de desdém

que eles sempre tinham e sempre têm para uma fatiota que não seja de grife

para um sapato que apenas a aparência tenha da nobreza do couro

era preciso saber o nome das divas da ópera e a elas oferecer o chá da tarde

e até mesmo tocar ao piano uma valsa troncha de chopin

[logo eu que da música tenho apenas o ouvido para ouvir]

era preciso – mesmo que de forma sutil e sem salamaleques – lamber botas

e chupar como doce o amargo desprezo também sutil de cérebros de porcos

e chafurdar de vez em quando na mesma lama onde crescem suas contas bancárias



mas a vida não me qualificou para nada disso e muito mais de jogo de cintura

e de bajulações a indivíduos desprezíveis que das letras conhecem o horóscopo do dia

que de filosofia compartilham a crença do dístico das notas de dólar

porque o seu deus se cobre de verde e está confinado e devidamente adorado

na senha de uma conta secreta nos bancos suíços e de negócios escusos em paraísos fiscais

paraísos de cujos benesses se julgam novos adões e novas evas

paraísos onde promovem suas festas irrigadas a sangue de cocaleiros da bolívia

e onde dançam tangos proibidos com prostitutas dos estúdios de cinema de hollywood

a essas confraternizações só teria eu – o desqualificado – acesso como mestre de cerimônia

ou cantor de músicas sertanejas de chapelão e cinturão de fivela de prata falsificada



não

a vida não me qualificou para isso

minha cintura foi sempre mais rígida do que a moral dessa gente

o meu pescoço duro e meu olhar de o que estou fazendo aqui sempre me condenaram

as patifarias não chegaram a mim

temiam-me ou desprezavam-me para tais

era aquele que não devia estar onde estava

era aquele que não tremia diante da autoridade patronal

que se julga dona de corpos e mentes

era aquele que de vez em quando chutava uma canela

mesmo que tivesse de pagar o preço por tal ousadia



assim qualificado e desqualificado vivi

assim qualificado e desqualificado sobrevivi

não tenho da vida nada mais a cobrar nem à vida devo algum centavo de minha miséria

fui e sou o que sempre fui e o que agora sou

meio trânsfuga

meio idiota

meio-sempre-qualquer-coisa-que-nunca-chegou-a-lugar-nenhum

mas achei sempre o lugar dentro de mim do qual não abro mão

o lugar que não é a latrina de ouro e prata cheia de merda

dessa sociedade podre que se exaure no cheiro nauseabundo

de suas próprias fezes

porque isso é o que me faz ter um mínimo de orgulho de ser humano

e não a besta coberta de ouro que não sabe de que é feito o capim que come



11.7.2022

(Ilustração: Alberto Magri - Menocchio)









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