qualifiquei-me para a vida quando nasci
com cabeça
tronco
e membros
e um cérebro que pensa
e um cérebro que sonha
e um cérebro que imagina e cria
a vida no entanto sempre me desqualificou
mesmo não sendo totalmente preto
[se o fosse seria muito pior]
mesmo tendo estudado em bom colégio
[não fosse isso o futuro seria futuro de preto]
mesmo tendo me formado numa grande universidade
[não fosse isso teria caído na fossa do subemprego]
a vida me desqualificou sempre mesmo assim
porque saí da pobreza e se a pobreza não saiu de mim
foi porque só ganhei o suficiente para viver
e não me curvei àquilo que acham que gente como eu deva ser
a sociedade branca e elitista não perdoa
quem ultrapassa linhas traçadas pela injustiça e pelo preconceito
mede-se a si mesma pela média da média da estupidez
e tem olhares de esguelha e desdém aos que deviam ser párias
não suporta – essa gente de nariz que não pode tomar chuva –
que alguém que não seja de suas hostes conviva no mesmo restaurante
se não for o atendente ou o garçom cheio de mesuras servis
médico ou professor – acinte total
enfim não basta que me qualificasse na vida
[e eu o fiz a duras penas – caminhando sempre com minhas próprias pernas]
era preciso ser humilde aos olhos dos bandidos engravatados
e não sujar com minha altivez de pobre impoluto
seus salões caiados de branco e ornados no mau gosto do ouro roubado
era preciso fingir não perceber o olhar de desdém
que eles sempre tinham e sempre têm para uma fatiota que não seja de grife
para um sapato que apenas a aparência tenha da nobreza do couro
era preciso saber o nome das divas da ópera e a elas oferecer o chá da tarde
e até mesmo tocar ao piano uma valsa troncha de chopin
[logo eu que da música tenho apenas o ouvido para ouvir]
era preciso – mesmo que de forma sutil e sem salamaleques – lamber botas
e chupar como doce o amargo desprezo também sutil de cérebros de porcos
e chafurdar de vez em quando na mesma lama onde crescem suas contas bancárias
mas a vida não me qualificou para nada disso e muito mais de jogo de cintura
e de bajulações a indivíduos desprezíveis que das letras conhecem o horóscopo do dia
que de filosofia compartilham a crença do dístico das notas de dólar
porque o seu deus se cobre de verde e está confinado e devidamente adorado
na senha de uma conta secreta nos bancos suíços e de negócios escusos em paraísos fiscais
paraísos de cujos benesses se julgam novos adões e novas evas
paraísos onde promovem suas festas irrigadas a sangue de cocaleiros da bolívia
e onde dançam tangos proibidos com prostitutas dos estúdios de cinema de hollywood
a essas confraternizações só teria eu – o desqualificado – acesso como mestre de cerimônia
ou cantor de músicas sertanejas de chapelão e cinturão de fivela de prata falsificada
não
a vida não me qualificou para isso
minha cintura foi sempre mais rígida do que a moral dessa gente
o meu pescoço duro e meu olhar de o que estou fazendo aqui sempre me condenaram
as patifarias não chegaram a mim
temiam-me ou desprezavam-me para tais
era aquele que não devia estar onde estava
era aquele que não tremia diante da autoridade patronal
que se julga dona de corpos e mentes
era aquele que de vez em quando chutava uma canela
mesmo que tivesse de pagar o preço por tal ousadia
assim qualificado e desqualificado vivi
assim qualificado e desqualificado sobrevivi
não tenho da vida nada mais a cobrar nem à vida devo algum centavo de minha miséria
fui e sou o que sempre fui e o que agora sou
meio trânsfuga
meio idiota
meio-sempre-qualquer-coisa-que-nunca-chegou-a-lugar-nenhum
mas achei sempre o lugar dentro de mim do qual não abro mão
o lugar que não é a latrina de ouro e prata cheia de merda
dessa sociedade podre que se exaure no cheiro nauseabundo
de suas próprias fezes
porque isso é o que me faz ter um mínimo de orgulho de ser humano
e não a besta coberta de ouro que não sabe de que é feito o capim que come
11.7.2022
(Ilustração: Alberto Magri - Menocchio)
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