para wagner mourão brasil
(1945-2023)
no fundo do vale profundo soam os passos lentos
do meditabundo caminhante
rasgam-lhe os pés as rochas pontiagudas
sob as águas mansas do rio negro
sobejam espantos em seus olhos fundos
cercados de sombras das altas falésias
rochas lisas e amarelentas
corroídas em suas alturas imensas
pelos bicos de agourentas aves
em seus voos rasantes de rapinagem
seus gritos cortam o ar no antegozo do sangue fresco
do combalido caminheiro em si mesmo enrodilhado
nos sombrios pensamentos de vida e de morte
não há sombra que o acompanhe
queima-lhe a cabeça a brasa do sol a pino
e as águas turvas do rio negro não lhe são refrigério
o sangue dos pés leva-o a correnteza
para um tempo que não virá
só
solitário
a solidão arranca-lhe do peito os suspiros
que lhe sabem perdas do outrora
acumuladas há muito às perdas do agora
sofre o caminheiro a canícula do abandono
sofre o caminheiro a descrença da chegada
abraça-o apenas a pedra rude
o corpo pesado de fantasmas roça-lhe o espinheiro
caminha
apenas caminha
o rio é sua estrada e corre para o mar
o rio é seu martírio e ele – o enlutado caminheiro –
sabe que seu destino é não lá chegar
mas ele caminha – caminha carregando a solidão
devagar
bem devagar
caminha
no vale profundo
que será de ora em diante seu fiel companheiro
4.7.2023
(Ilustração: El Greco - the burial of the count of Orgaz, 1586-1588)
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