27 de jan. de 2021

os dragões de komodo

 




abro a janela ao calor da noite

[tenho aberto janelas demais

ao longo da vida – todas inúteis]

lá fora o monstro invisível faz o seu trabalho

enquanto os seres humanos

[ainda tenho dúvidas quanto à humanidade desses seres]

soltam fogos e abraçam-se calorosamente

soltando no ar perdigotos nos quais nadam

[insensíveis e invisíveis]

os milhões de monstros que invadem

invisivelmente

insensivelmente

as carnes e os vasos sanguíneos de suas vítimas



à janela aberta do meu quarto

só chegam o farfalhar das folhas das árvores

e o som dos passos das formigas

[devo dizer que não ouço o barulho das folhas nem o caminhar das formigas

- mas há barulho no ar - sim!]

só um raio fugitivo de lua debruça-se

para dentro da minha solidão

o ronronar do sono da gata sobre o tapete

não quebra o silêncio que há dentro de mim



sob pontes e viadutos rastejam ratos

roem os pés dos inaladores de crack

e entopem seus cachimbos com o cheiro de suas fezes

há crianças sem narizes sugando seios que lambem o chão

coberto de baratas mortas que se fingem de vivas

os missionários de uma igreja qualquer

servem do caldeirão do diabo – ou das bruxas que gargalham

pela madrugada em cima de vassouras tecnológicas

– a sopa quente

a sopa rala de todas as noites

e o pãozinho bento que mata o desejo de continuar dormindo



nas fazendas distantes há ronco de porcos

e grasnar de marrecos

suas carnes gordas engordam os burgueses

que – gordos e balofos – arrotam champanha francês

dançando sambas incongruentes e funks depravados em seus palácios de cristal



dentro da noite de lua branca e passos de formiga

a classe média não consegue dormir ao ronco

dos aviões que viajam para miami

levando seus sonhos e arroubos de entorpecidas múmias

[o colchão é duro e os sonhos são marshmallows]



a janela aberta [mais uma que abro

dentro do meu peito] traz o cheiro de mim

para dentro de mim

- o cheiro que eu tinha quando um dia adormeci

na beira do abismo

e acordei assustado na boca dos dragões de komodo

- e nunca mais consegui dormir sem pensar neles

[os dragões que comem estrelas

e vivem – invisíveis e insensíveis –

na nossa corrente sanguínea]



2.1.2021

(Ilustração: John Kenn Mortensen)

(O autor, Isaias Edson Sidney, interpreta esse poema no podcast cujo link é:



2 comentários:

  1. Perfeito.👏👏👏👏👏👏👏👏

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  2. Querido Isaías, um gatilho inesperado, com sua poesia ácida tal qual a saliva desses répteis, desenterrado da imberbe adolescência quando fantasiava ter uns paleolíticos dragões de komodo como bichinhos de estimação rsrsrs
    Abração, Nabil

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