27 de out. de 2021

descrença

 




os braços lassos descaem ao longo do corpo

sem os abraços

a boca de desejos atrás das cortinas se retraem

pelos não beijos

a esperança morre em cada morte – em cada

criança

a morte esperneia em cada adeus – em cada

sorte

fecham-se túmulos sem flores e sem choro

o vento carrega a lágrima seca nos olhos baços

sem beijos e sem abraços

murcha o desejo e não canta o cordão de carnaval

você pensa – vai passar – vai passar – vai passar

mas volta o vírus à revolta dos que o renegam

morre o pai

morre a mãe

morrem o avô e a avó

os lamentos sobem morros e morrem no mar

o piano no sótão cobre-se da poeira do tempo

no chão de pedra não nascem flores

e os espinhos perfuram os corações solitários

você pensa – vai acabar – vai acabar – vai acabar

mas volta o vômito podre dos defuntos no frigorífico

e o chão de vidro tem marcas de rostos que não sorriem

criança – não verás país nenhum como este

e o arremedo de paixão contraria todos os prognósticos

sabe-se apenas que há vultos brancos em estertores

sabe-se apenas que há pulmões implodindo nos balões vazios

sabe-se apenas que há silêncios que nunca entenderemos

morre-se aqui

morre-se ali

morre o fulano e a menina ainda virgem

morre o cientista e morre o motorista

morre a mulher do chefe e até mesmo o chefe da estação

respira – alguém diz – respira

o giroflex gira e leva o anão do bairro

e leva o banqueiro – todos se congraçam agora

no mesmo desejo de ar e de vida

há o cheiro de uma guerra que se perdeu há um século

e há o tubo de ensaio no laboratório

mas não há juízo para quem quer abraços e beijos

e os braços que eram lassos apertam corpos

e o vírus muda seus espinhos e caminha pelos paços

e caminha pelas travessas

e entra pelas casas

derruba fronteiras e entranha-se nas entranhas

das aeronaves e dos salões de baile

o churrasco de domingo queima o novo tempero

a festa de aniversário tem confetes invisíveis

e a dança macabra tem trejeitos de espantalhos

quem morre não descansa – apenas morre

quem vive não se emenda – apenas vive

porque não se crê naquilo que não se vê



21.1.2021

(Ilustração: Monika Meglić - danse macabre)

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