Dizem
que é o sabiá a ave símbolo do Brasil. Sem desdouro desse belo pássaro, acho
que esse título devia ser dado ao bem-te-vi. Sabe por quê?
Porque
bem-te-vi se vê em todo lugar. No meu quintal, por exemplo, moram vários. E por
todo lado que se vai, é só prestar atenção, lá está um esganiçado bem-te-vi a
tartamudear ou a gritar alto e em bom som o seu canto onomatopaico.
E
seu canto (ou seria melhor dizer seu grito?) é uma espécie de consciência, de
aviso, de alerta: se desmatam uma floresta, pode estar certo de que lá está o
assanhado pássaro a lembrar: bem-te-vi, bem te vi que não prestas.
Em
escritórios, seria uma ave bastante útil: cada vez que um empresário estivesse
a tentar comprar um político, lá estaria o bem-te-vi a lembrar: bem te vi, bem
te vi, seu corruptor.
Nos
gabinetes de políticos, então? Seria uma festa, o festival de bem-te-vis a
alertar a todos: bem-te-vi, bem-te-vi, bem-te-vi. Pena é que ficariam roucos,
de tanto gritar e ninguém os ouvir.
Para
os conservadores, então, não haveria bem-te-vis que chegassem!
Duas
historinhas, de minha vida, sobre essa raça triste, que é a raça dos conservadores,
dos hipócritas e moralistas. Vivo encontrando-os por aí, em suas casacas
pretas, mesmo quando usam bermudas, nas praias ou nos clubes elegantes. São uma
gente que tem sobre si uma nuvem negra de caradurismo. Em sua maioria, são
aparentemente inofensivos, mas... cuidado! Não dê poder, por menor que seja, a
um moralista, que logo ele vira um Edward mãos de tesoura. Lembra o personagem
do filme? Aquele estranho de mãos em forma de tesouras, que tanto cortava
magnificamente os cabelos das madames quanto dava formatos às árvores?
Pois,
é: os moralistas, quando têm algum poder, são assim. Mãos de tesoura. Cortam
tudo o que lhes desagrada. Sem nenhuma arte, no entanto.
Mas,
vamos às histórias.
A
primeira. Tinha eu uns quatorze anos, formava-me no antigo ginasial, as quatro
séries que vinham logo depois do grupo escolar. Difícil explicar isso, mas
seria hoje a oitava série do ensino fundamental, acho. Mais ou menos isso.
Naquele tempo, tinha formatura. E então, ganhei do meu padrinho um livro: os
Lusíadas, uma edição bastante interessante, da FTD. Li-o, encantado, embora
ainda entendesse pouco da saga heróica de Camões. Mas, achei algo estranho, na
tal edição: a numeração dos versos, lá pelo fim da aventura, tinha uma lacuna.
Isto só fui descobrir mais tarde, na Faculdade de Letras: faltavam os versos do
canto IX, o canto da Ilha Namorada, quando os navegantes, ao voltar para a
velha terra, recebem da deusa o presente por suas conquistas, uma ilha povoada
de ninfas, belas, loiras, nuas, para um banquete pantagruélico de sensualidade.
Os padres da FTD, simplesmente, pularam o canto nono. Fico, agora, pensando:
devia estar lá, atrás da cadeira do editor de batina, o nosso pássaro a gritar
bem alto: bem-te-vi, bem-te-vi, seu imbecil!
Corta.
Para a segunda história. Muitos e muitos anos se passaram. Até já me aposentei
da dura lida de professor. Escrevo. E sempre que posso, atormento os amigos,
para achar um lugarzinho onde publicar meus textos. E então, reencontro o José Arlindo . Camarada de lutas e lidas. Eu, aqui,
em Sampa. Ele, lá, em BH. Correspondemo-nos. Por e-mail, claro. (Já estão
dizendo que e-mail é coisa de gente velha, mas tudo bem). Gentil, como sempre,
leva o Zé Arlindo a um amigo dele os meus textos. Para publicar numa revista
de, digamos, certo prestígio: a Revista da Academia Mineira de Letras (afinal,
embora não acadêmico, sou mineiro, uai!). Publicam dois contos meus. Exulto.
E
o bem-te-vi, onde entra? Calma. Ele está sobrevoando e gritando por aí. Logo,
logo, ele volta.
Para
uma plateia seleta, aqui em Sampa, propus-me ler um de meus contos. Escolhi o
que fora publicado pela Revista da Academia Mineira. Para isso, releio o
original, no computador e, depois, o que está na revista, que vai ser a fonte
da apresentação. Então, surpresa! Encontrei várias diferenças... e sabe em quê?
Em trechos mais, digamos, fortes, do conto.
Explico.
No conto, falo de um menino que tem o primeiro alumbramento com uma dançarina
de cabaré, que ele espiona trepado (sem trocadilho, sem outras alusões) numa
árvore, numa insone madrugada mineira. A descrição é realista. Afinal, um
escritor (e isso é ponto de honra, para mim) não pode ter medo das palavras. Se
elas estão aí, se existem, podem e devem ser empregadas, quando necessárias.
Adivinhem,
no entanto: cortaram várias palavras, frases inteiras, sei lá por quê.
Ofenderiam possivelmente o ouvido sensível de acadêmicos? Ou o de leitores da
prestigiosa revista? Não sei. Apenas sei que a censura já acabou há muito tempo
e, se as minhas palavras os ofendiam, que não publicassem o conto. Era uma
prerrogativa que eles, os editores, teriam. E eu nem ficaria sabendo o motivo.
E não precisaria convocar os meus bem-te-vis para gritarem mais alto o seu já
tão estridente grito: bem-te-vi, seus urubus!
Pois,
é: se os moralistas, os conservadores, têm medo das palavras, de simples
palavras, quanto mais de outras coisas, mais importantes, mais vitais. O mundo,
para eles, tem de ser o que eles imaginam, tem de ser sempre igual, com os
mesmos e velhos paradigmas, e não o que o mundo é, na realidade, cheio de som e
fúria, como diria o Bardo, cheio de incertezas e safadezas, humano, demasiado
humano, como diria o Nietzsche.
Por
isso, acho que o bem-te-vi poderia ser bem essa espécie de alerta, em nossas
consciências, para que deixássemos de ser aquilo que ele, o passarinho
sem-vergonha, vive apontando que nos viu fazer ou pensar, para que deixemos de
ser sempre os mesmos, os mesmos.
Bem
te vejo, meu bem-te-vi!
20.11.2007
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