deus acorda de um cochilo
(acordou-o explosão de estrela ou canto de grilo?)
coça a barba branca e rala
passa a mão pela carapinha
pelo aposento divino pensa e caminha
e de repente solta pelo infinito a voz ainda clara
- gabriel raphael qualquer um
(deus ainda pronuncia o efe com pê hagá
mas não – não está nada gagá)
- vem aqui um dos dois e já
quero aos meus pés um dos dois ou qualquer um
apresenta-se o anjo espantando um muçum
assustado e sem saber o que vem depois
- quem é você? – pergunta deus
esfregando ainda sonolento os divinos olhos
- venho do fundo dos mares e dos abrolhos
e não sou ninguém aos olhos teus, ó meu senhor de todos os céus
e de todos os infernos
- e como ousas usar comigo o tu
ó cara de urubu?
não és gabriel nem raphael – és por acaso algum dos modernos?
- perdoai-me vossa divindade que estou confuso
com esse horário infinito e o fuso...
- bate essas tuas asas inúteis e traga rápido aqui o meu menino
deve estar ele lá no playground se divertindo
- mestre dos mestres, o vosso menino há mil anos ou mais
não frequenta mais o parquinho
e se vós não vos lembrais...
- cala-te demônio dos mares ou dos ares –
de tudo lembro-me bem
vai procurar meu filho em virgem concebido
e não abras mais esse teu bico de enxerido
corre o anjo por todo o céu
e traz enfim aos pés de deus
o filho que encontrara fazendo escarcéu
e se metendo na encrenca entre palestinos e judeus
- filho meu – começa deus a sua fala
quanto tempo não nos vemos nem nos abraçamos
- já lá vai para quinhentos anos ou mais ó meu pai
se a minha lembrança ainda é clara
desde que discutimos e quase brigamos
por causa dos rumos da tua igreja
- esqueçe essa bobagem ó filho amado
quero apenas que tu vejas
esse retrato que ti pintaram e dele reproduziram
por tantos e tantos anos esses idiotas
como se pudessem de tua raça fazer chacotas
- eu sei de todos eles ó meu pai e foi durante o teu cochilo...
- e não fizeste nada – tu não fizeste nada
para impedir aquilo?
- fazer o quê – ó meu pai dorminhoco
se a tela está assim pintada
e milhares e milhares de vezes reproduzida
por ser essa a minha imagem mais querida
com cabelos lisos e olhos azuis
a cútis branca e transparente - se tudo quanto fizer será pouco
para sair da armadilha desses pauis
porque todo o povo lá da terra ficou completamente louco
com a farsa bem articulada de todas essas pinturas
- disseste-o bem ó meu filho crucificado
que há muitas e muitas loucuras
por esse mundo sem eira nem beira mas não posso ficar calado
e tenho que te perguntar como tu vais sair dessa treta
como tu pretendes um dia à terra voltar se foste assim pintado
e lá a todos os crentes assim te apresentares com essa tua cara preta?
10.11.2021
(Ilustração: Príncipe da Paz, de Alicia Sault)
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