14 de nov. de 2021

dilemas de deus – 4

 




deus acorda de um cochilo

(acordou-o explosão de estrela ou canto de grilo?)

coça a barba branca e rala

passa a mão pela carapinha

pelo aposento divino pensa e caminha

e de repente solta pelo infinito a voz ainda clara

- gabriel raphael qualquer um

(deus ainda pronuncia o efe com pê hagá

mas não – não está nada gagá)

- vem aqui um dos dois e já

quero aos meus pés um dos dois ou qualquer um

apresenta-se o anjo espantando um muçum

assustado e sem saber o que vem depois

- quem é você? – pergunta deus

esfregando ainda sonolento os divinos olhos

- venho do fundo dos mares e dos abrolhos

e não sou ninguém aos olhos teus, ó meu senhor de todos os céus

e de todos os infernos

- e como ousas usar comigo o tu

ó cara de urubu?

não és gabriel nem raphael – és por acaso algum dos modernos?

- perdoai-me vossa divindade que estou confuso

com esse horário infinito e o fuso...

- bate essas tuas asas inúteis e traga rápido aqui o meu menino

deve estar ele lá no playground se divertindo

- mestre dos mestres, o vosso menino há mil anos ou mais

não frequenta mais o parquinho

e se vós não vos lembrais...

- cala-te demônio dos mares ou dos ares –

de tudo lembro-me bem

vai procurar meu filho em virgem concebido

e não abras mais esse teu bico de enxerido



corre o anjo por todo o céu

e traz enfim aos pés de deus

o filho que encontrara fazendo escarcéu

e se metendo na encrenca entre palestinos e judeus



- filho meu – começa deus a sua fala

quanto tempo não nos vemos nem nos abraçamos

- já lá vai para quinhentos anos ou mais ó meu pai

se a minha lembrança ainda é clara

desde que discutimos e quase brigamos

por causa dos rumos da tua igreja

- esqueçe essa bobagem ó filho amado

quero apenas que tu vejas

esse retrato que ti pintaram e dele reproduziram

por tantos e tantos anos esses idiotas

como se pudessem de tua raça fazer chacotas

- eu sei de todos eles ó meu pai e foi durante o teu cochilo...

- e não fizeste nada – tu não fizeste nada

para impedir aquilo?

- fazer o quê – ó meu pai dorminhoco

se a tela está assim pintada

e milhares e milhares de vezes reproduzida

por ser essa a minha imagem mais querida

com cabelos lisos e olhos azuis

a cútis branca e transparente - se tudo quanto fizer será pouco

para sair da armadilha desses pauis

porque todo o povo lá da terra ficou completamente louco

com a farsa bem articulada de todas essas pinturas

- disseste-o bem ó meu filho crucificado

que há muitas e muitas loucuras

por esse mundo sem eira nem beira mas não posso ficar calado

e tenho que te perguntar como tu vais sair dessa treta

como tu pretendes um dia à terra voltar se foste assim pintado

e lá a todos os crentes assim te apresentares com essa tua cara preta?





10.11.2021

(Ilustração: Príncipe da Paz, de Alicia Sault)





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