raspo um pouco a sua memória e salta uma sombra
recuo contra o fantasma a minha curiosidade
sei que a vida está assim cheia de peles sobre peles
eu curto também meus mortos ou melhor as mortas
aquelas que me amaram e que eu amei e aquelas
que nem sempre amei mas marcaram meu couro
não briguem nossos fantasmas por um espaço curto
somos a soma de camadas nem sempre muito etéreas
sangramos quando não queremos e nem sempre a unha
arranha o fantasma procurado nem sempre toleramos
que sombras que deviam ter desaparecido nas sombras
ganhem um brilho de líquen ou de fogo-fátuo inesperados
e ocupem entre os lençóis o caminho da exasperação
deixemos os mortos a si mesmos entregues eu penso
e você me olha como se fosse eu o fantasma transparente
que tolda o seu susto e seu não convencimento e então
sabemos que os mortos estão ali são eles que não querem
nos deixar em paz entulhados os nós em nossos abismos
desatados os nós em nossa memória dominados os nós
que não queríamos desatar quando somos nós os únicos
a não vencer a batalha do esquecimento de um relógio
que não fabricamos e cujo pêndulo corta-nos a carne
na noite fria você se assusta com a sombra em meus olhos
eu me assombro com a coragem acesa em suas entranhas
e nos enrolamos em nossos fantasmas como cobras no ninho
chorando o destino que não nos revelou a tempo o abismo
caímos e somos não anjos nem demônios em busca de fogo
ou de paz apenas os amantes que chegaram muito tarde
tarde demais na vida um do outro e por isso agora sabemos
que entre sombras e fantasmas para nós o tempo acabou
12.11.2018
(Ilustração: Roberto Ferri)
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