13 de dez. de 2018

os burgueses





pelas ondas do rádio o som do piano

invade a noite e transporta-me para

aquele tempo distante perdido nas

montanhas de minas o menino descalço

a descer à noite a rua comprida e torta

conduzido pelas mãos da mãe sob a luz

da lua à luz baça dos postes de ferro

a iluminação pública que deixa sombras

nas calçadas mal cuidadas que margeiam

os casarios baixos de janelas enormes

as ruas quase desertas e já silenciosas

o passo firme da mãe que rezara

a noite toda e do menino descalço

as pedras da rua ferindo seus pés

o cansaço do dia a escola no dia

seguinte bem cedo o café ralo o pão

seco os cadernos ajuntados na pasta

e então de repente a luz que ofusca

da janela enorme do vetusto casarão

ilumina a rua e o menino de olhos

vidrados o jorro de luz de brilho o som

de um piano dentro da noite pessoas

que falam que riem tilintam copos

de bebidas caras o vinho tinto a taça

enorme cheia de frutos boiando o

ponche servido às mulheres cheirosas

o frio da noite não tem ali guarida

só os pés do menino descalço na

calçada fria olhando tudo aquilo no

espanto dos olhos o brilho da festa

o calor do riso dos corpos burgueses

eles os burgueses lavrenses que riem

e se divertem dentro de seus ternos

de casimira inglesa bem cortados

suas gravatas borboleta os decotes

dos longos vestidos das mulheres

a saúde burguesa entrevista à luz

dos janelões iluminados os lustres

de cristais polidos a música a dança

eles me desprezam esses burgueses

lavrenses me desprezam e nem sabem

que me desprezam com seu riso sua

festa suas bebidas caras e suas caras

de saúde e frescor e beleza eles me

desprezam e eu hoje aqui agora ao som

desse piano dentro da noite solitária

o mesmo piano burguês de outrora

e eu me lembro deles os burgueses

e eu também os desprezo e o melhor

de tudo é que assim como eles nunca

souberam que me desprezavam

eu também os desprezo anonimamente

solitariamente mas profundamente e

não quero que eles saibam e acho que

eles nunca saberão e é melhor assim

que eles nunca venham a saber

o quanto eu ontem e hoje os desprezo

desprezo-os pelo menino descalço

e pelo poeta solitário na noite fria

e esse desprezo não pode ficar

apenas na mente que sonha na noite

mas deve transbordar nos versos

nas palavras nos olhos de hoje

que não esquecem o desprezo deles

na fria noite distante de ontem

nas velhas montanhas de minas





8.11.2018


(Ilustração: Leszek Sokol)





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