pelas ondas do rádio o som do piano
invade a noite e transporta-me para
aquele tempo distante perdido nas
montanhas de minas o menino descalço
a descer à noite a rua comprida e torta
conduzido pelas mãos da mãe sob a luz
da lua à luz baça dos postes de ferro
a iluminação pública que deixa sombras
nas calçadas mal cuidadas que margeiam
os casarios baixos de janelas enormes
as ruas quase desertas e já silenciosas
o passo firme da mãe que rezara
a noite toda e do menino descalço
as pedras da rua ferindo seus pés
o cansaço do dia a escola no dia
seguinte bem cedo o café ralo o pão
seco os cadernos ajuntados na pasta
e então de repente a luz que ofusca
da janela enorme do vetusto casarão
ilumina a rua e o menino de olhos
vidrados o jorro de luz de brilho o som
de um piano dentro da noite pessoas
que falam que riem tilintam copos
de bebidas caras o vinho tinto a taça
enorme cheia de frutos boiando o
ponche servido às mulheres cheirosas
o frio da noite não tem ali guarida
só os pés do menino descalço na
calçada fria olhando tudo aquilo no
espanto dos olhos o brilho da festa
o calor do riso dos corpos burgueses
eles os burgueses lavrenses que riem
e se divertem dentro de seus ternos
de casimira inglesa bem cortados
suas gravatas borboleta os decotes
dos longos vestidos das mulheres
a saúde burguesa entrevista à luz
dos janelões iluminados os lustres
de cristais polidos a música a dança
eles me desprezam esses burgueses
lavrenses me desprezam e nem sabem
que me desprezam com seu riso sua
festa suas bebidas caras e suas caras
de saúde e frescor e beleza eles me
desprezam e eu hoje aqui agora ao som
desse piano dentro da noite solitária
o mesmo piano burguês de outrora
e eu me lembro deles os burgueses
e eu também os desprezo e o melhor
de tudo é que assim como eles nunca
souberam que me desprezavam
eu também os desprezo anonimamente
solitariamente mas profundamente e
não quero que eles saibam e acho que
eles nunca saberão e é melhor assim
que eles nunca venham a saber
o quanto eu ontem e hoje os desprezo
desprezo-os pelo menino descalço
e pelo poeta solitário na noite fria
e esse desprezo não pode ficar
apenas na mente que sonha na noite
mas deve transbordar nos versos
nas palavras nos olhos de hoje
que não esquecem o desprezo deles
na fria noite distante de ontem
nas velhas montanhas de minas
8.11.2018
(Ilustração: Leszek Sokol)
Nenhum comentário:
Postar um comentário