eu vejo o que tu vês
tu não vês o que eu vejo
eu vejo o sangue nos olhos
do povo que espera o que não virá
eu vejo o que não virá
no espanto de cada fome e de cada espasmo
e tu
tu só vês o que está escrito no livro
que diz coisas que ninguém come
tu só vês o invisível
tu não vês o que eu vejo
eu vejo a tripa roncando à bala perdida
eu vejo o pé descalço pisando brasas
eu vejo o olho arregalado no estampido
da última bala do soldado morto de medo
eu vejo o beco e corpos que se entregam
e tu o que vês
apenas encostas a cabeça no teu travesseiro
erguendo preces a um deus que não te ouve
vês o arrependimento forçado no dízimo
que encherá de vazio a panela dos teus adoradores
tu não vês os barracos de chão batido furados de bala
por onde entra o facho do medo nos transes da madrugada
tu vês o lucro
tu não vês o logro que eu vejo em cada palavra que tu dizes
para o penitente que agoniza ao assinar o cheque para o teu deus
e te tornas o agente de todas as pestes que sobem dos esgotos
tu não vês o que eu vejo e mis ojos son tus ojos somente nos dias de chuva
quando a lama desce do morro para o teu copo de uísque
tu fazes a festa e a feira e a farra de dólares suíços cheios de sangue
e eu vejo exatamente o que tu és
e eu vejo exatamente o que tu não vês
e eu vejo que isso absolutamente não importa para teus planos
porque não sou nada e tu és aquele que tem a caneta e o decreto
na mesa de mogno de onde disparas teus mensageiros engravatados
para semear tua palavra podre e arrecadar pelo mundo mais asseclas
que irão fazer de ti o que tu nunca foste o potentado de deus
a esbanjar ouro que tiras do nariz para encher tuas astronaves
buscas apenas o rio jordão dos pesadelos de quem paga
aquilo que eu vejo agora mais do que nunca em teus delírios
à passagem de teu cortejo sobre os corpos mortos no esgoto
y tu ojos non son mis ojos pois a tempestade lavou para sempre
a retina de meus olhos que agora cegos apenas podem chorar
25.11.2018
(Ilustração: Henrique Alvim Correa)
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