5 de dez. de 2018

mis ojos son tus ojos




eu vejo o que tu vês

tu não vês o que eu vejo

eu vejo o sangue nos olhos

do povo que espera o que não virá

eu vejo o que não virá

no espanto de cada fome e de cada espasmo

e tu

tu só vês o que está escrito no livro

que diz coisas que ninguém come

tu só vês o invisível

tu não vês o que eu vejo

eu vejo a tripa roncando à bala perdida

eu vejo o pé descalço pisando brasas

eu vejo o olho arregalado no estampido

da última bala do soldado morto de medo

eu vejo o beco e corpos que se entregam

e tu o que vês

apenas encostas a cabeça no teu travesseiro

erguendo preces a um deus que não te ouve

vês o arrependimento forçado no dízimo

que encherá de vazio a panela dos teus adoradores

tu não vês os barracos de chão batido furados de bala

por onde entra o facho do medo nos transes da madrugada

tu vês o lucro

tu não vês o logro que eu vejo em cada palavra que tu dizes

para o penitente que agoniza ao assinar o cheque para o teu deus

e te tornas o agente de todas as pestes que sobem dos esgotos

tu não vês o que eu vejo e mis ojos son tus ojos somente nos dias de chuva

quando a lama desce do morro para o teu copo de uísque

tu fazes a festa e a feira e a farra de dólares suíços cheios de sangue

e eu vejo exatamente o que tu és

e eu vejo exatamente o que tu não vês

e eu vejo que isso absolutamente não importa para teus planos

porque não sou nada e tu és aquele que tem a caneta e o decreto

na mesa de mogno de onde disparas teus mensageiros engravatados

para semear tua palavra podre e arrecadar pelo mundo mais asseclas

que irão fazer de ti o que tu nunca foste o potentado de deus

a esbanjar ouro que tiras do nariz para encher tuas astronaves

buscas apenas o rio jordão dos pesadelos de quem paga

aquilo que eu vejo agora mais do que nunca em teus delírios

à passagem de teu cortejo sobre os corpos mortos no esgoto

y tu ojos non son mis ojos pois a tempestade lavou para sempre

a retina de meus olhos que agora cegos apenas podem chorar





25.11.2018 


(Ilustração: Henrique Alvim Correa)


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