28 de dez. de 2016

A TERCEIRA PERNA




(H. Sorayama)


“Qual é o animal que tem quatro pernas de manhã, três ao    meio-dia e duas ao anoitecer? ” Esse o enigma proposto pela Esfinge a Édipo. Referia-se, é claro, ao homem. Engatinha quando criança, anda sobre duas pernas na maturidade e utiliza-se de uma bengala na velhice.

Há apenas um engano nesse enigma mítico: na verdade, o homem nunca tem, em sua trajetória, apenas duas pernas. O homem é um animal de três pernas. E sem a terceira perna ele não sobrevive.

Senão, vejamos: como todo animal, enquanto no útero da mãe, é dela que ele depende para sobreviver. Até aí, nada de mais. Também ao nascer, em seus primeiros vagidos, é a mãe ou algum substituto que vela por sua segurança. E começam as diferenças entre o bicho-homem e os demais bichos. Quase todos os nossos demais irmãos vivos já nascem com alguns dispositivos de sobrevivência bastante desenvolvidos. Embora dependam dos pais, essa dependência não é absoluta. A maioria bem que conseguiria sobreviver, se os pais faltassem, pelos menos até encontrar uma família substituta. O homem, não. Se não tiver outros homens para ampará-lo, alimentá-lo e protegê-lo, não teria como sobreviver. E aí nasce a terceira perna. O seio da mãe. O cuidado de alguém. A chupeta. O brinquedinho. O berço...

Com essa terceira perna, nascem também os traumas. Os complexos. A dependência de fatores externos que nunca mais o deixarão. Com marcas indeléveis em sua personalidade. E a terceira perna muda a cada idade, a cada circunstância, embora esteja sempre presente em todos os momentos da vida humana. E ela varia de pessoa para pessoa. Pode ser a mãe, na infância. Ou o professor, na adolescência. O conselho de um amigo, na idade adulta. Mas essas são terceiras pernas comuns, ou melhor, mais óbvias. Há outras, muitas outras. Desde aquelas que milhões utilizam até aquelas específicas de cada um. Idiossincráticas: do indivíduo ou de um povo.

A religião, por exemplo. Quer terceira perna mais gorda? E mais variada? O cristianismo, o budismo e vários outros ismos escondem milhares de tipos de terceiras pernas. A pior de todas, aquela que quase ofusca todo os demais sentidos, não importa em que ismo esteja, é o fundamentalismo, também ele um ismo. E talvez anterior ao fundamentalismo, há um outro ismo pior: o monoteísmo. Ao adotar a crença num único deus, a humanidade inventou a exclusão, o divisionismo, o preconceito, o ódio por diferença de opinião. E todas as sacanagens possíveis foram cometidas em nome de um único deus, criado à imagem e semelhança do homem: cruel, vingador, ciumento de seu rebanho, a ponto de não admitir que ninguém que pense diferente possa partilhar de suas benesses.

O rol de terceiras pernas estranhas também é imenso: pertencem às superstições. Ou ao folclore. Pode ser uma medalhinha de São Jorge ou do seu dragão. Pode ser um brinco no meio da língua. Ou a crença de que voltará Dom Sebastião de Portugal, para fazer o sertão virar mar. Ou o mar virar sertão.

Leio no jornal que o homem mais gordo do mundo, com cerca de 450 quilos, que mora nos Estados Unidos, teve de ser transportado para o hospital. Além de quase demolirem a casa, para que ele pudesse sair, os bombeiros tiveram que contar com helicóptero e uma carreta especial. Seu problema: come demais, quando fica angustiado ou depressivo. A terceira perna, neste caso, transformou esse coitado num homem elefante.

Uma terceira perna engraçada, se não fosse trágica, nos dias de hoje: os cursos de autoajuda. Substituem, por algum tempo, em seus efeitos imediatos, mas que não devem perdurar mais do que o tempo de esquecer o quanto se pagou por eles, a terceira perna mais complicada de tratamentos psicanalíticos ou psicológicos. No entanto, não servem para nada. Aliás, servem: servem para engordar as contas bancárias de inúmeros prestidigitadores da boa-fé de idiotas que acreditam em milagres a cem dólares a hora. Nesse caso, a terceira perna desses ilusionistas é o bolso cheio de dinheiro.

Triste terceira perna é a das nações. A terceira perna coletiva. Jogos olímpicos, por exemplo. A nações se empolgam com os feitos de seus atletas, como se de cada medalha dependesse o seu destino de nação. Os países do terceiro mundo, então, fazem de cada conquista uma forma de autopromoção que beira o ridículo. É como se uma simples medalha - de bronze, prata ou de ouro - pudesse pôr de joelhos o “inimigo” mais poderoso, mais rico ou mais charmoso. No Brasil, esportes como judô, iatismo ou hipismo (que às vezes ganham medalhas) são festejados como se cada brasileiro fosse um exímio conhecedor de ippons ou tivesse no quintal de sua casa um haras com os mais puros-sangues ou vivesse em marinas fantásticas com barcos ainda mais fantásticos. O povo precisa disso, diriam os menos cépticos. Afinal, é o circo nosso de cada dia.

Circo onde vivemos e morremos como palhaços. Desdentados como o idiota do palhaço Tiririca, com suas musiquinhas preconceituosas, ingenuamente preconceituosas, mas espertamente utilizadas pela multinacional Sonny, para faturar às custas da ingenuidade de uns e da estupidez de milhares. Transformam-se os atletas olímpicos em heróis da mesma forma como se criam os Mamonas Assassinas ou os Tiriricas da vida em matéria de consumo rápido.

Pobre país, a correr atrás de heróis para defender sua integridade como nação. País que busca terceiras pernas no ato isolado de seus cidadãos, para fugir à responsabilidade coletiva de construir uma nação decente para os seus filhos.





P.S.: Este texto foi escrito em 1997. Havia referências aos jogos olímpicos de Atlanta, que eu retirei. Mas deixei as referências aos Mamonas Assassinas, que já haviam morrido tragicamente num acidente de avião, em 1996, e ao palhaço Tiririca que, hoje, é deputado federal!

Nenhum comentário:

Postar um comentário