18 de dez. de 2016

sic transit



(Zdzisław Beksiński)






tenho em meu peito um cemitério

povoado de vultos que se foram

ancestrais e amigos

mestres e conhecidos

pessoas que preencheram minha vida

hoje pontuam meu peito de cruzes negras



não nego à vida o direito de celebrar

os mortos ilustres ou os mortos esquecidos

mas dentro de mim não peço nada mais

que uma lágrima diária a molhar o chão

onde pousam e repousam os meus mortos

não os quero em velas de aniversários

não os quero em vivas e urras de festinhas animadas

não os quero bonecos de homenagens ou estátuas

são meus mortos queridos e devem ficar assim

bem quietos e doloridos no fundo do meu peito

em suas tumbas negras ao lado de marcos

que lembrem cruzes negras a povoar meus sonhos

ou que tenham suas cinzas espalhadas

entre pedras e narcisos



não me preocupa a morte e sim a ausência

que cobre meus olhos e perturba meus sentidos

faz doer um pouco cada dia o meu peito

como a fonte que goteja no alto da montanha

para transformar-se em rio depois de muito correr

e são esses os rios da minha memória

e são essas as águas do meu desalento

verto-as em silêncio no meio da madrugada

como um cálice de fel e veneno que se toma

porque a vida não nos dá outra opção



tenho o meu peito povoado de vultos

como um cemitério abandonado à beira da estrada

e no entanto olho os meus companheiros todos

e a mim mesmo na trilha estreita da vida

como futuros habitantes desse mesmo cemitério

no peito de algum sobrevivente até que um dia

nenhuma outra geração exista que se lembre de nós



sic transit gloria mundi sic transit gloria sic transit sic



23.11.2016


Nenhum comentário:

Postar um comentário