(Lucian Freud)
que na manhã fria puxo ainda mais o cobertor sobre mim e ajeito-me na cama toca uma sonata qualquer ao piano vindo do rádio lá fora um frio de rachar imobilizo-me esperando o corpo reagir ao frio fecho os olhos não sei se sonho não sei se acordo é preciso desligar o rádio desligar me movo para a direita estendo o braço e aciono o botão do silêncio e tento voltar à mesma posição não há mais mesma posição não sou o mesmo que estava há pouco encolhido a coberta não é a mesma a cama mudou os átomos todos se mexeram reconstituíram um novo cenário tudo é diferente mesmo o cofre onde durmo o meu quarto que viaja na galáxia o mundo ficou mais velho aquele átimo de segundo é tudo velho o que via e é tudo novo o que eu vejo e não é mais novo tudo muda de instante em instante estrelas explodem mundos se criam o universo se expande a vida morre a morte espreita o vento sopra e tudo muda e cada vez que abro ou pisco os olhos o mundo o mundo morreu renasceu tornou a morrer enquanto patos nadam nas lagoas distantes pássaros voam rumo ao sul ao sul ao sol ao vento a luz de outono o frio puxo de novo as cobertas me ajeito e sou eu um pouco mais perto da morte lúcida a luz que brilha sobre cada pedaço de vida lá fora eu não durmo e eu sonho o sonho de que não há possiblidade de saída para a vida senão a tradicional o corpo inerte velas acesas e choro a terra o escuro a noite do esquecimento a poesia de uma flor que nasce em meio ao paralelepípedo de vidro e leite o estranho mugido de vacas aladas só falta mesmo um unicórnio no jardim do espaço aéreo onde flutua o paulistinha do vitório a plenos pulmões gritando que achara mais um maço de cigarros a marca estranha diferente para a coleção e todos rodopiam na rodovia da morte do grito em cadência da escola de samba no grupo álvaro botelho a menina isa que encanta os olhos do menino pobre eu que não sei se choro ou peço de novo a absolvição ao padre calhorda que ri e gargalha no confessionário da velha matriz o casamento que devia ter acontecido as paixões o sexo o amor a amizade que fica não tem nada como um bom vinho para aquecer as noites ouço beethoven quero um carro zero na garagem não tem mais megalomania acabou tudo filhos solidão amor sexo casamento política soldados na rua tropas marchando mil novecentos e sessenta e quatro soldado de cabeça de papel a loucura do final do curso a faculdade o vento frio o calor das praias amigos amigos muitos amigos alunos que bebem besteiras que lhes dizem do púlpito o padre em frangalhos o rosto coberto da verônica a lua cheia de lavras o céu estrelado mais nada a contar não tem sentido esse movimento para esquentar as cobertas são outras estão frias o meu desejo arrefece quero você eu quero me espera eu te amo eu te odiei filhos amores viagens vontades insatisfeitas miséria dinheiro tudo trabalho inútil estou com frio e a coberta mudou no instante em que desliguei o rádio tocava uma galinha de rameau caramba que desgraça o meu país enfim sós eu você o mundo pegando fogo futebol tudo acabado entre mim e quem mais haveria de pensar nisso o tempo todo querendo fugir com a fuga de bach o teatro a ilusão a poesia enquanto luta o boxeur navega o carro pelas estrelas a cama em fogo o chão se abre vêm à tonas os clichês morte aos mendigos e aos parasitas gritos e uivos da direita fascio di combatimiento credo creio em deus pai não isso não que não sou trouxa vamos todos agora é tarde sabe o que eu queria agora sabe não sabe talvez um dia não te amo nesta manhã de outono desliguei o rádio não há silêncio nesta manhã que
30.3.2017
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