estou só absolutamente só não há quem beba comigo
uma cerveja não há quem gargalhe comigo por uma
piada suja não quem possa compartir comigo uma confidência
ou um amor desastrado não há quem possa contar e gozar
a última conquista da mais bela fêmea ainda que saibam todos
que é tudo bazófia de macho bêbado em botequim de pé sujo
mas que ao sentido tribal de amigos e parceiros
de copo e de pranto isso não tem a menor importância
não há amigos nem parceiros ao redor da mesa não há
estou absolutamente só comigo mesmo e nem estou
ainda que solitário sentado num banco de balcão de bar
porque estou só no meu cubículo de doze metros quadrados
a beber a cachaça infame do copo único que parece veneno
sou apenas nesta noite fria de primavera [em que até
mesmo a primavera ronda com o frio a minha janela]
o partícipe anônimo da maior tribo de toda a humanidade
sou eu mais aquele que agasalha no peito [e é a única coisa que
me anima] a dor de cantar mais uma vez a canção do silêncio
a canção que não tem voz nem eco nem palavras
os versos desnecessários porque essa tribo que me acolhe
[não sei por que me veio a ideia de acolhimento quando sei que
os braços de cada um são trapos pendentes ao longo do corpo
e os corpos espalham-se por uma vasta extensão que cobre
talvez toda a terra e muito mais] essa tribo imensa de
imensa e triste existência a tribo dos corações solitários
6.11.2018
(Ilustração: Edvard Munch -night in St Cloud-1890)
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