você pode olhar a cidade e não ver a cidade
para ver a cidade é preciso olhar com veracidade
e também com alguma velocidade
que os fatos da cidade passam num flash
o que ali acontece naquela esquina
por exemplo uma batida de um carro com ônibus
já deixou de ser curiosidade porque mais adiante
um motociclista atropelou uma senhora de idade
que levava um buquê de cravos mas na verdade
o que de fato ocorreu é que um moleque de rua
cheirando cola arrancou o colar de falsas
pérolas da dama chic da periferia e o policial
que atendeu à tentativa de suicídio
ali mesmo no velho viaduto do chá
desceu o porrete no estudante que protestava com palavrões
xingando o prefeito o deputado e até o presidente
bem na porta do teatro o mendigo tira o pau pra fora
e começa um longo e fétido xixi e todo mundo que passa
fica horrorizado e ninguém faz nada porque na cidade
cada um cuida de seu xixi e cada um cuida de si
no beco ao lado do cinema pornô um prostituto gay
abaixa a calça do garçom do bar da esquina
e faz-lhe um boquete de cinquenta contos mas o moleque
só lhe dá vinte e ainda ameaça chamar a polícia
o vento levanta a saia da prostituta na praça
e todo mundo vê que ela tem algo mais entre as pernas
a verdade é que ninguém sabe quem é quem
o distinto cavalheiro todo engravatado pode ser
aquele golpista que mata velhinhas para roubar
suas aposentadorias e ainda posa de bom moço
o atendente da farmácia que à noite vira michê
para sustentar a mãe doente que mora no interior
e a mocinha toda estilosa em seu tailleur azul
acaba de surrupiar a carteira do visitante caipira
que olhava com espanto os cartazes do cinema
que só passa filme pornô enquanto o porteiro
do velho hotel de encontros enxota o cachorro
que havia urinado em seu pé quando ele cochilava
os mendigos da praça ficam todos de olho
em qualquer passante que tenha jeito de otário
mas por ali só passa pé de chinelo e operário
com cheiro de graxa e macacão azul com a marca
no peito da empresa que explora seu trabalho
numa loja de doces e bombons alguém coloca
um disco da cantora sertaneja do momento
e uma mendiga descabelada e suja começa
a dançar bem em frente espantando a freguesia
na boca do metrô o cheiro de pobre e creolina
avança pela manhã enquanto os empregados sérios
dos escritórios de advocacia e de contabilidade
olham espantados para o alto do edifício itália
onde um objeto estranho tremula ao vento
e sem poder saber se aquilo seja um extraterrestre
ou apenas uma nova bandeira do corinthians
eles correm para os elevadores entupidos
atrasados que estão para começarem a tocar
milhares e milhares de documentos que vão
correr pela cidade nas mochilas dos motoboys
a mulher que varre as ruas junta num montinho
um maço de cigarros e duas camisinhas usadas
para que o seu parceiro venha sem seguida
e com uma pá longa coloque tudo num carrinho
e leve para algum lugar onde se junta todo o lixo
da cidade formando uma montanha bem alta
e ninguém sabe o que fazer com aquilo tudo
mas a vida segue e todo mundo joga na rua
o palito do picolé e o tíquete inútil da loja
de brinquedos em cuja vitrina o superman
abre os braços para cada moleque espantado
num desejo que se forma como luz de natal
na avenida larga os carros não mais buzinam
parados no imenso congestionamento
estão todos os motoristas tão absortos
mexendo em seus telefones celulares
que a vida que passa a seu lado nem importa
e só o que importa é alguém em algum lugar
dizendo que o trânsito está ruim e vai chover
o banco fecha as portas e deixa do lado de fora
o contínuo atrasado com as contas do patrão
alguém pede desculpas à mulher pelo esbarrão
mas ninguém liga e ela também não
continua seu caminho sem perceber que
sua bolsa está mais leve e o aposentado
que carrega o cartaz onde se lê compra-se ouro
acende um toco de cigarro e olha em volta
para em seguida tomar o ônibus lotado
que o levará para a miserável sopa num subúrbio
desgraçado de longe e tão miserável quanto ele
as luzes aos poucos vão-se acendendo amarelas
como a vida que passa e que se vai para longe
nos passos apertados de cada cidadão de cada
habitante desconhecido a ver a cidade cada um
de seu jeito de tal forma que ela a velha cidade
parece um turbilhão de microscópicas vidas
a girar dentro de um tubo de papelão com vidros
coloridos a vida que se vive na grande e velha
cidade é mesmo um estranho caleidoscópio
2.10.2018
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