5 de nov. de 2018

veracidade







você pode olhar a cidade e não ver a cidade

para ver a cidade é preciso olhar com veracidade

e também com alguma velocidade

que os fatos da cidade passam num flash

o que ali acontece naquela esquina

por exemplo uma batida de um carro com ônibus

já deixou de ser curiosidade porque mais adiante

um motociclista atropelou uma senhora de idade

que levava um buquê de cravos mas na verdade

o que de fato ocorreu é que um moleque de rua

cheirando cola arrancou o colar de falsas

pérolas da dama chic da periferia e o policial

que atendeu à tentativa de suicídio

ali mesmo no velho viaduto do chá

desceu o porrete no estudante que protestava com palavrões

xingando o prefeito o deputado e até o presidente

bem na porta do teatro o mendigo tira o pau pra fora

e começa um longo e fétido xixi e todo mundo que passa

fica horrorizado e ninguém faz nada porque na cidade

cada um cuida de seu xixi e cada um cuida de si

no beco ao lado do cinema pornô um prostituto gay

abaixa a calça do garçom do bar da esquina

e faz-lhe um boquete de cinquenta contos mas o moleque

só lhe dá vinte e ainda ameaça chamar a polícia

o vento levanta a saia da prostituta na praça

e todo mundo vê que ela tem algo mais entre as pernas

a verdade é que ninguém sabe quem é quem

o distinto cavalheiro todo engravatado pode ser

aquele golpista que mata velhinhas para roubar

suas aposentadorias e ainda posa de bom moço

o atendente da farmácia que à noite vira michê

para sustentar a mãe doente que mora no interior

e a mocinha toda estilosa em seu tailleur azul

acaba de surrupiar a carteira do visitante caipira

que olhava com espanto os cartazes do cinema

que só passa filme pornô enquanto o porteiro

do velho hotel de encontros enxota o cachorro

que havia urinado em seu pé quando ele cochilava

os mendigos da praça ficam todos de olho

em qualquer passante que tenha jeito de otário

mas por ali só passa pé de chinelo e operário

com cheiro de graxa e macacão azul com a marca

no peito da empresa que explora seu trabalho

numa loja de doces e bombons alguém coloca

um disco da cantora sertaneja do momento

e uma mendiga descabelada e suja começa

a dançar bem em frente espantando a freguesia

na boca do metrô o cheiro de pobre e creolina

avança pela manhã enquanto os empregados sérios

dos escritórios de advocacia e de contabilidade

olham espantados para o alto do edifício itália

onde um objeto estranho tremula ao vento

e sem poder saber se aquilo seja um extraterrestre

ou apenas uma nova bandeira do corinthians

eles correm para os elevadores entupidos

atrasados que estão para começarem a tocar

milhares e milhares de documentos que vão

correr pela cidade nas mochilas dos motoboys

a mulher que varre as ruas junta num montinho

um maço de cigarros e duas camisinhas usadas

para que o seu parceiro venha sem seguida

e com uma pá longa coloque tudo num carrinho

e leve para algum lugar onde se junta todo o lixo

da cidade formando uma montanha bem alta

e ninguém sabe o que fazer com aquilo tudo

mas a vida segue e todo mundo joga na rua

o palito do picolé e o tíquete inútil da loja

de brinquedos em cuja vitrina o superman

abre os braços para cada moleque espantado

num desejo que se forma como luz de natal

na avenida larga os carros não mais buzinam

parados no imenso congestionamento

estão todos os motoristas tão absortos

mexendo em seus telefones celulares

que a vida que passa a seu lado nem importa

e só o que importa é alguém em algum lugar

dizendo que o trânsito está ruim e vai chover

o banco fecha as portas e deixa do lado de fora

o contínuo atrasado com as contas do patrão

alguém pede desculpas à mulher pelo esbarrão

mas ninguém liga e ela também não

continua seu caminho sem perceber que

sua bolsa está mais leve e o aposentado

que carrega o cartaz onde se lê compra-se ouro

acende um toco de cigarro e olha em volta

para em seguida tomar o ônibus lotado

que o levará para a miserável sopa num subúrbio

desgraçado de longe e tão miserável quanto ele

as luzes aos poucos vão-se acendendo amarelas

como a vida que passa e que se vai para longe

nos passos apertados de cada cidadão de cada

habitante desconhecido a ver a cidade cada um

de seu jeito de tal forma que ela a velha cidade

parece um turbilhão de microscópicas vidas

a girar dentro de um tubo de papelão com vidros

coloridos a vida que se vive na grande e velha

cidade é mesmo um estranho caleidoscópio



2.10.2018

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