12 de nov. de 2018

canto da sereia




na tarde morna o quarto escuro o leito tem lençóis amarfanhados

toco de leve os teus seios e tu me sorris e a vida parece nos trilhos

não há nenhuma ameaça iminente em nosso tugúrio de amor

e só os gemidos que damos em nossos gozos enchem o ar viciado

do quarto fechado trancado e escurecido onde apenas bruxuleia

a luz dos teus olhos quando mais uma vez beijo tua boca ávida

e um suave perfume que não é bem um perfume mas o cheiro

de nossos corpos e de nossos fluidos na ânsia do embate amoroso

chega até minhas narinas e o ronronar do ar condicionado acende

mais uma vez o nosso desejo e a cama estranha e redonda é pequena

para os estranhamentos de nossos corpos refletidos nos espelhos

e para o tempo que temos ali a cada gozo e cada gemido e depois

estendidos ambos e extenuados eu ainda tenho a lucidez de contemplar

o teu corpo o teu sexo as tuas pernas esguias e tua bunda crepuscular

há montanhas e vales e isso é apenas uma metáfora idiota que me vem

quando penso que nossos sexos nasceram em épocas tão distintas

e o verbo que arrebenta minhas entranhas na extrema cavalgada

nunca trará a mesma sintaxe de tuas paixões perdidas em outras camas

em outros corpos e outros gozos e isso minha amada não tem qualquer

importância no que sentimos e no que pintamos de quadros eróticos

nas nossas festas de interiores muito mais intensas que todo o passado

somos eu e tu os amantes de primeira hora apenas os amantes que

se conheceram há pouco num baile de debutantes e que se debruçam

às margens ainda não pisadas de desejos desenhados em cavernas

no mais profundo dos vales onde a água mal rumoreja para formar

os rios que inundarão lagos e oceanos e nós somos apenas duas gotas

recém caídas no imenso rio a explorar a corredeira e as cachoeiras

caminhando juntos num momento extremado o leito arenoso do rio

das nossas vidas ainda tão próximas da fonte que os risos e gozos são

nesse quarto escuro de um hotel no meio da cidade no meio da tarde

o concerto de verão de uma orquestra que toca uma só música repetida

à exaustão em nossos ouvidos que apenas têm como diapasão o canto

das sereias a nos levar para o fundo do oceano de onde nunca sairemos






5.10.2018

(Ilustração: Nicoletta Tomas Caravia)



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