acompanho minha memória
que voa por sobre montanhas
e segue o vento que espalha perfumes
pelas terras férteis de cafeeiros
o espanto de lembrar é meu guia
nessa viagem ao tempo adolescente
quando as águas que ainda correm
molhava os pés rachados que pisavam
as pedras brancas dos riachos
e marcava a areia dos caminhos solitários
talvez naquele tempo houvesse
apenas um leve sentimento de felicidade
marcada – a felicidade – pela folha caída
da mangueira ainda sem frutos
a esperança nascia no galho da jabuticabeira
e o bico do bem-te-vi pousava-a gentilmente
no ninho dos meus olhos
ao cair da luz de um dia sem sustos
assim ainda sonha minha memória
levada pelo vento para um tempo sem consciência
de que o mundo – esse triste e velho mundo –
mastiga sem dó cada sonho
que nasce nas águas do riacho que desce
do alto da montanha e rola as pedras brancas
até fiquem redondas
e então o jovem que sonhava descobre
que os sonhos não se arredondam nunca
e deixam na carne o sinal de suas arestas
– e agora quando enfim desperto
sinto apenas as escaras das cicatrizes indeléveis
26.2.2025
(Ilustração: Yoran Cazac)