Todos cantam sua terra,
Também vou cantar a minha...
Casimiro de Abreu
Cutuco a memória, que é profunda e complexa, para buscar lá embaixo, bem embaixo de toda uma longa vida, as emoções de um tempo perdido no calçamento rude de uma praça distante, no interior das Minas Gerais, numa cidade de ruas tortas e subidas lentas, quando ainda por elas trafegava o velho bonde. Estou falando de Lavras, estou falando da Praça Doutor Jorge, estou falando dos anos cinquenta.
Foi a praça da minha infância. Ali nasci, ali vivi os anos duros de um tempo que não tinha dó dos pés descalços do menino pobre de calças curtas que soube aproveitar cada centímetro de liberdade concedida por um espaço democrático de convivência e brincadeiras. Ah, a criançada que fazia daquela praça o cenário de seus sonhos, o reino de Oz ou o Velho Oeste, o palco mal iluminado das batalhas dos cowboys de revólver de espoleta e das rodas de dança das princesas de vestidos vaporosos!
Não era e não é muito grande a Praça Dr. Jorge. Seu traçado, na década de cinquenta, quando eu, menino, ali reinava num reino de faz de conta, era bem simples: um arruado até um redondo, uma mini praça, quase no meio, onde havia três bancos de cimento; e esse arruado se dividia em dois a partir daí até quase o final; as alamedas eram cercadas de ciprestes bem tosados, até mais ou menos um metro e pouco de altura, que formavam uma espécie de barreira e podiam servir de esconderijos para nossas brincadeiras; as árvores que a circundavam eram todas bem podadas, as copas arredondadas, como guarda-chuvas verdes; havia uma outra espécie arbórea diferente, mas a que me chamava mais a atenção era uma espécie alta que existia lá embaixo, quase no final da praça, um tronco roliço e grosso que soltava uma espécie de papiro. As folhas das árvores que pareciam guarda-chuvas serviam para algo inusitado: conseguíamos raspar, quase sempre com as unhas, um dos lados, com muito cuidado, para não furar a folha, deixando transparecer seu tecido e, depois, guardávamos dentro de um livro. O tempo secava essa folha e permitia ver as nervuras internas, como numa radiografia mágica da natureza, o que nos encantava.
Mas é preciso superar o sonho e a saudade, para traçar um retrato desse espaço que foi mágico. É preciso deixar suspensa a lágrima do tempo, para voltar ao passado e vê-lo com os olhos da realidade. A Praça Doutor Jorge dos anos cinquenta pode ficar, sim, como o cenário do sonho para o velho que a recorda, mas foi, sobretudo, um espaço de convivência de pessoas que por ali passaram e deixaram – ou não – a marca de sua presença neste mundo. E viveram em casas de tijolo e cimento, mesmo que a memória insista em vê-las imateriais e envoltas na neblina da saudade que contamina as lembranças. Deixemos, pois, suspensa a memória afetiva e voltemo-nos para o mundo real daqueles tempos.
Falemos de construções e dos seres que nelas habitaram. Coloco-me, observador privilegiado, embora meus olhos sejam o do menino de calças curtas e pés descalços, subindo o longo trajeto da minha casa para a praça. Minha casa ficava no meio do terreno onde hoje é a rua... não, não importa o nome dessa rua, porque, para mim, ela nem existe. Quando alcanço o passeio sem cimento e olho para a frente, vejo o Grupo Escolar Álvaro Botelho, construção que guarda a exata memória daquele tempo, pois não se modificou por todos esses anos. Aos sete anos, subo trêmulo suas escadarias, para as primeiras letras. Completamente analfabeto, ali aprenderei a ler e escrever; ali aprenderei as primeiras noções de cidadania, que nem tinha ainda esse nome; ali aprenderei que há uma cidade em torno da praça, um Estado em torno da cidade, um País em torno do Estado e um mundo imenso – que, depois, ficou tão pequeno. Guardo apenas dois nomes das mestras desse tempo: Lilinha e Joana, sendo a segunda a professora substituta que contava histórias.
De frente para o velho grupo escolar, ainda na calçada malcuidada, ouço batidas de martelo no couro de um sapato. É meu tio Faria, com seu avental de couro, sentado num tamborete, tendo entre as pernas a bigorna onde uma bota acaba de receber um novo solado que precisa ser devidamente pregado ao couro cru. Seus bigodes amplos escondem o sorriso matreiro, de alguém sempre de bem com a vida, mesmo que minha tia Elisa cumpra vários dias adoentada, no amplo quarto do meio sobrado ao lado, onde moram há tanto tempo. No lugar do sobrado que, se ainda existisse, deveria estar caindo aos pedaços, construiu sua neta Eliâny um belo prédio e uma escola de inglês.
Mas o que atrai os olhos do menino que chega à rua, ali, à esquerda, é o sobrado da família Zagota. Dominou por décadas, com sua imponência, o horizonte da praça. No primeiro andar, um armazém de secos e molhados de seu Salvador, o patriarca, e, depois, de seu filho; no segundo andar, a residência da família. Lá em cima, no frontispício, a data de construção: 1922, em algarismos romanos, que só muito mais tarde foram devidamente lidos e entendidos.
À direita, na divisa do nosso terreno, a casa dos Torres, senhor e senhora já idosos, e seus filhos. Os nomes me faltam, depois de tanto tempo, mas recordo apenas de um dos filhos do casal Torres, o Osmar, porque era muito amigo de meu irmão Marcos. Logo abaixo, a casa do senhor Meneleu, fazendeiro, em cuja propriedade havia uma grande plantação de laranjas. Sua esposa, muito carola, como, aliás, quase todas as mulheres dessa época, inclusive minha mãe, mandara construir na fazenda uma pequena capela, para realização de cultos, novenas etc. Tinham um casal de filhos gêmeos, Francisco e Francisca, mas todos só falavam Chico e Chica, e acho que outra filha mais velha. A memória me trai. Seguindo pela mesma calçada, encontramos logo depois a Farmácia Naly, dos irmãos... (a memória é cruel, por ser seletiva e improvável: há detalhes de que me lembro bem e outros que me falham); um deles, que era espírita, foi meu professor de esperanto, a língua universal de Zamenhoff, hoje esquecida, ou quase. E depois, o outro sobrado da praça, já nessa época bastante envelhecido. Lembro que ali morava a enfermeira que, durante meses, quando eu tinha seis anos, foi à minha casa diariamente aplicar-me injeção de penicilina. Havia queimado a perna direita, numa brincadeira com gasolina numa máquina de caixa de fósforos, e lembro-me de ter ficado uns seis meses acamado. A seguir, um prédio baixo, onde, por muitos anos funcionou a venda de meu avô, Vicente, que morreu nessa década, aos oitenta e tantos anos. Vivia em nossa casa, o vô Vicente, sempre enrolando seu cigarrinho de palha, e tossindo. Tossindo muito. Quando subia o longo aclive de nossa casa até a rua, fazia-o vagarosamente e gemendo. Mas, assim que alcançava a rua, empertigava o corpo magro e esguio, parecia rejuvenescido, o que levava a minha mãe a achar que toda aquela subida sofrida não passava de teatro, namorador que era o vô Vicente. Na sua venda, vendia frutas e verduras, mas principalmente era o ponto de encontro dos amigos dele, para o jogo de truco, depois das seis da tarde. Não deixava que as mulheres, suas freguesas, em geral, escolhessem as frutas ou os legumes, alegando que ele comprara daquele jeito e não ia vender só as melhores. Um tanto ranzinza, meu vô Vicente.
Após a vendinha de meu avô, a casa da família que era dona da padaria São Jorge, já naquela época um tradicional estabelecimento familiar. E a família era grande, muitas moças, muitos rapazes. Muitos homens. Lembro bem o Tatá. Qual seria o seu nome verdadeiro? Não sei. Chamavam-no assim. Era cego como pai, o Jorge que dera o nome ao estabelecimento, e tocava a padaria. A todos servia, embrulhando pães, doces, roscas, dando o troco, fazendo, enfim, todo o trabalho como se enxergasse perfeitamente bem, o que nos deixava, a nós, crianças que pouco entendíamos do mundo, bastante curiosos e espantados. Como? Mas ele não é cego? Cego e irônico, brincalhão. Lembro minha mãe brava, ou fingindo-se de brava, a contar para minha irmã que, ao pedir pão-de-queijo, o Tatá lhe dissera para levar também o queijo, para colocar no pão-de-queijo. Anos depois, quando já conhecia um pouco mais da vida, lembro que o Paulo Brasil, chofer de praça (era assim que se falava, na época), e seus amigos de vez em quando vinham pegar o Tatá e levá-lo à zona de mulheres, para uma boa farra. Padaria São Jorge: tem história, muita história.
O estabelecimento seguinte era a barbearia do seu Antenor. Às vezes, me cortava o cabelo. Mas também frequentava a barbearia concorrente, a do seu Arlindo, do outro lado da praça. Voltaremos a ele, daqui a pouco. Seu Antenor era pai de um grande amigo meu de brincadeiras, o Alair, cujo destino e vida ignoro completamente, não sei por onde andou ou onde está. Logo após a barbearia do seu Antenor, havia um armazém, também de secos e molhados, às vezes ia lá comprar alguma coisa para minha mãe. A memória não me trouxe nenhum nome, infelizmente. A seguir, a última casa da calçada, bem na esquina da rua que descia direta para a ESAL, a Escola Superior de Agronomia de Lavras, que cresceu, mudou de nome e se transformou numa importante universidade. Enfim, esse era o lado da praça onde ficava a minha casa e, no final da praça, tomando todo o quarteirão, os portões do Instituto Gammon.
Tem toda uma relação com a minha infância o Gammon, embora jamais ali tenha entrado como estudante (ao chegar o tempo do antigo ginásio, fui estudar no distante Colégio N. S. Aparecida, nem me perguntem por quê). Mas era um frequentador assíduo do Gammon, especialmente suas quadras esportivas, onde assisti a muitas festas, jogos, desfiles. Em agosto, mês do aniversário do colégio, sempre havia colégios de outras cidades que vinham competir com os atletas locais. Jogos e competições memoráveis, ano após ano, com o menino de calças curtas crescendo e cada vez se interessando mais pelas garotas do internato do Colégio Carlota Kemper que enchiam as arquibancadas do velho estádio com seus uniformes azuis, suas meias brancas e muita, muita torcida, sob olhares atentos de professores e funcionários. Sabe aquela velha expressão “ver com os olhos e lamber com a testa”? Assim nos sentíamos, os moleques babões pelas tantas pernas femininas a enfeitar as tardes dos jogos “olímpicos” do mês de aniversário do Gammon.
Voltemos à velha praça e tentemos lembrar os estabelecimentos e os habitantes do outro lado. Não são muitos os que eu recordo, mas sei que, subindo em direção ao centro, ficava a residência e o consultório médico do doutor Gilberto (será esse o nome? Ai, memória, memória...). Logo depois um pequeno bar, escarafuncho a memória e mais uma vez ela me falha, não me lembro o nome desse estabelecimento. A seguir, uma serraria, onde muitas vezes fui buscar em sacos de aniagem a serragem que alimentava o fogão de minha mãe, em épocas mais difíceis, quando não se tinha dinheiro para comprar lenha. Pegada à serraria, a barbearia do seu Arlindo. Uma figura, o seu Arlindo. Lembro que, quando muito criança, ele me cortava o cabelo, não sem grande dificuldade: moleque chorão e rebelde, eram necessárias duas pessoas para me segurar na cadeira do barbeiro, a gritaria e a choradeira deviam ecoar por toda a praça. Já mais velho, me lembro de que seu Arlindo se candidatou a vereador e criaram (ou ele criou, não sei) para ele vários slogans, que chamaram a atenção até mesmo da revista O Cruzeiro, que publicou uma pequena nota em suas páginas de divertimento. Um desses slogans grudou em minha memória: “Arlindo subindo, cabelo caindo”.
Grupo Álvaro Botelho. O meu velho grupo escolar. Um começo de ano, 1952, quando completei 7 janeiros, completamente analfabeto, subi pela primeira vez as escadas do velho grupo e ali fui alfabetizado, ali conheci o que era necessário conhecer do mundo naquele momento, ali tive a minha primeira paixão, paixonite de garoto bobo, por uma garota que tinha o nome parecido com o meu (acho que, se ela ler essas linhas – hoje uma distinta senhora que de vez em quando frequenta a minha página do face book, sem desconfiar de nada - talvez até se reconheça, é um risco que eu corro, mas não posso deixar de registrar nessas memórias esse fato importante na minha formação emocional. Fechemos o parêntese, que temos ainda uma outra personagem fundamental na minha vida para revelar). As velhas carteiras do grupo testemunharam o nascimento de uma amizade que durou uma vida, a dele, já que ele se foi antes de mim: Vitório Pereira Resende, o amigo de todos os dias por todos os anos seguintes, o irmão que podia estar distante, mas cuja amizade permaneceu até que a indesejada o levou, por quem choro todos os dias de minha existência, porque dele não deixo de me lembrar um só dia. Se não tivesse sido a pedra inicial do alicerce de tudo o que aprendi até hoje, o Grupo Escolar Álvaro Botelho já teria sido fundamental para mim, por ter sido ali que encontrei um dos meus poucos e maiores amigos.
Dei toda a volta à praça Doutor Jorge e volto para o lado onde fica minha casa, passando, claro, pelas portas altas do velho e saudoso casarão da família Zagota, no qual havia uma porta que nunca se abria, bem na quina do edifício, aliás nem era bem uma porta, digamos que fosse uma janela, pois havia uma soleira alta, na qual nos assentávamos, eu e meus amigos, para longos papos pelas tardes e noites de Minas, ponto de encontro para o cinema ou parada quase obrigatória, para a troca de ideias, quando voltávamos para casa, depois de uma noite de domingo no redondo da praça principal, a paquerar a meninas. E tenho que falar de mais duas residências: a casa do senhor Alencar e a casa alpendrada ao lado. O senhor Alencar está na minha memória com um simpático aposentado que não saía de casa e era sempre visto lendo um jornal ali na varanda. A fumaça do tempo apagou outras lembranças do menino de pés descalços e, depois, a do estudante do Colégio N. S. Aparecida, que se aproxima agora da casa emblemática de sua infância e adolescência.
Era ainda muito moleque, devia ter por volta de seis anos, quando nesta casa ao lado do quase-sobrado de tio Faria e tia Elisa morou uma família de muitos membros, alguns garotos como eu, com os quais brincava, e uma agregada, empregada, não sei bem (lembrem que os tempos eram bem outros), que era índia. Diziam que o chefe da família trabalhava em um lugar que a minha imaginação não alcançava, um lugar chamado Rondônia, onde havia índios. Durante mais ou menos seis meses, ali viveu, não sei por que motivo, um menino da minha idade, porém muito mais forte, mais desenvolto e que entendia mal o português, mas mesmo assim se tornou, durante esse tempo, o meu melhor amigo e acho que eu era também o seu melhor, se não o único, amigo: o índio Justino. Por ser mais forte, ganhava todas as lutas e brincadeiras mais ousadas dos moleques dessa idade, nos folguedos da pracinha. Protegia-me dos maiores e eu o iniciava, sem ter muita noção de que o fazia, nas brincadeiras e no mundo dos brancos. Foi um tempo muito estranho para as minhas lembranças de hoje, mas foi um tempo feliz, longe ainda de quaisquer aporrinhações ligadas às dificuldades da vida, da consciência de quanto precisavam trabalhar a minha mãe e minha irmã para se sustentarem e educarem e alimentarem esse moleque atrevido que não saía das ruas e do mato, com estilingue na mão e com a única preocupação de viver cada momento.
Mas essa casa ainda me reservava outra enorme, imensa, surpresa. Alguns anos depois, já eu terminava o ginasial – por essa época, na minha formatura, meu padrinho Geraldo, filho do tio Faria e da tia Elisa, me presenteou com um exemplar de Os Lusíadas, sobre o qual já muito escrevi, em outras crônicas e até mesmo numa peça de teatro (O julgamento de Goya) – terminava o ginasial, dizia eu, morou naquela casa emblemática outra família vinda de longe, do Estado do Rio, da cidade de Campos, hoje Campos dos Goytacazes. E nessa família vivia, como enteada, uma garota chamada Marinete. Foi, talvez, a maior paixão da minha vida, até hoje, uma paixão chorada e sentida e sofrida como soem ser as grandes paixões adolescentes. Chegamos a namorar por algum tempo, mas logo, num episódio que hoje interpreto como preconceito contra o moleque pobre e aparentemente sem futuro, da família dela, ela foi mandada embora da cidade, para a cidade de origem, para nunca mais voltar. O dia de sua partida foi o mais negro da minha vida de adolescente ainda não muito esperto nas vicissitudes do amor, mas já sofrendo uma perda que pressentia que seria definitiva. Os afagos e tentativas de consolo de meu tio Faria encontraram apenas as lágrimas incontidas e abundantes de um jovem coração despedaçado pela primeira vez, pelo primeiro e real grande amor de sua vida. Correspondemo-nos por algum tempo, um breve tempo, mas esse mesmo inimigo – o tempo – acumpliciado por outros dois grandes inimigos daquele amor, a distância e a pobreza – que marcavam em fogo na minha cabeça a impossibilidade de um reencontro - fizeram que relação esfriasse, mas não o sentimento. Ficou o travo amargo da decepção, que me acompanhou como uma sombra e vive ao meu lado até hoje, como uma flor de metal que se coloca sobre um túmulo, para que dure mais que os ossos do defunto ou a própria existência do saudosista que recorda um tempo morto, enterrado, mas persistente na memória como a flor de metal.
E o menino descalço que subiu a ladeira lenta de sua casa velha, localizada lá embaixo, no meio do terreno, aquela casa que um dia quase caiu na nossa cabeça, quando lá morávamos apenas eu, minha mãe e meu avô, e uma das vigas mestras do telhado rachou e só não permitiu que o telhado desabasse porque tive a coragem inconsequente de subir no forro e escorar a cumeeira, para que pudéssemos continuar dormindo aquela noite que podia ter sido nossa última noite na terra, aquele menino descalço desce de novo a ladeira, pula a janela baixa de seu quarto, liga o velho rádio Philips, para ouvir as músicas que vinham pelo éter das ondas desde o Rio de Janeiro, da Rádio Nacional, as vozes de cantores e locutores perdidos no tempo, tão perdidos no tempo, que parecem hoje ecos longínquos de uma idade que parece mais ter sido vivida como um sonho do que como realidade, naquelas ruas tortas e ladeiras lentas – por onde subia e descia o velho bonde - de uma cidade do interior de Minas, a cidade de Lavras, onde nasci e vivi até os meus vinte anos.
2.4.2018 / 3.10.2019