1 de out. de 2019

autorretrato nº 6



 

nasci numa madrugada janeira quando o ano de 45 havia mal começado

e a guerra lá na europa mal terminado nasci numa madrugada janeira

talvez com chuva talvez com vento balançando os galhos da jabuticabeira

não sei como foi meu nascimento se fiz minha mãe sofrer dores no parto

ou se estava presente naquele quarto o meu pai que logo me abandonou

sei apenas que era pobre pobre pobre e cresci assim ouvindo ao longe

o dobre do sino da matriz onde um dia fui batizado e cresci quase bicho

do mato tive horta de couve e criei pato era um menino meio desaforado

chupei manga batida no tronco me lambuzando nos seus sucos

chupei muita jabuticaba trepado às velhas árvores do comprido quintal

chutei bola de meia em partidas épicas nos campinhos de terra batida

e rolei muita bola de gude em grandes torneios de pouco juízo

e muita gritaria lutei contra turmas de meninos vadios como eu

algibeira cheia de pedras e atiradeira em punho príncipe valente

que chegava cansado à tarde atrás da sopa quente da minha mãe

desci ladeiras e ruas tortas levando marmitas para minha irmã

na fábrica de tecidos onde ela trabalhava e no caminho havia

barcos de papel quando chovia e cera de abelha em muros de arrimo

no grupo escolar aprendi o mundo nas histórias contadas

e nos livros que cheiravam mundos mal desconfiados que existissem

sonhei nos versos de um poeta luso e embarquei na caravela

de vasco moscoso de aragão nas páginas do escritor baiano

contei mentiras e inventei histórias estudando muito e vivendo

como podia até que um dia descobri que a vida passara e eu

eu era apenas os sonhos que sonhara não os sonhos que realizara



20.9.2019


(Ilustração: Robert Fisher - Starry Night)

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