nasci numa madrugada janeira quando o ano de 45 havia mal começado
e a guerra lá na europa mal terminado nasci numa madrugada janeira
talvez com chuva talvez com vento balançando os galhos da jabuticabeira
não sei como foi meu nascimento se fiz minha mãe sofrer dores no parto
ou se estava presente naquele quarto o meu pai que logo me abandonou
sei apenas que era pobre pobre pobre e cresci assim ouvindo ao longe
o dobre do sino da matriz onde um dia fui batizado e cresci quase bicho
do mato tive horta de couve e criei pato era um menino meio desaforado
chupei manga batida no tronco me lambuzando nos seus sucos
chupei muita jabuticaba trepado às velhas árvores do comprido quintal
chutei bola de meia em partidas épicas nos campinhos de terra batida
e rolei muita bola de gude em grandes torneios de pouco juízo
e muita gritaria lutei contra turmas de meninos vadios como eu
algibeira cheia de pedras e atiradeira em punho príncipe valente
que chegava cansado à tarde atrás da sopa quente da minha mãe
desci ladeiras e ruas tortas levando marmitas para minha irmã
na fábrica de tecidos onde ela trabalhava e no caminho havia
barcos de papel quando chovia e cera de abelha em muros de arrimo
no grupo escolar aprendi o mundo nas histórias contadas
e nos livros que cheiravam mundos mal desconfiados que existissem
sonhei nos versos de um poeta luso e embarquei na caravela
de vasco moscoso de aragão nas páginas do escritor baiano
contei mentiras e inventei histórias estudando muito e vivendo
como podia até que um dia descobri que a vida passara e eu
eu era apenas os sonhos que sonhara não os sonhos que realizara
20.9.2019
(Ilustração: Robert Fisher - Starry Night)
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