29 de set. de 2019

assim caminha a poesia






perfeito como uma sonata de beethoven

desenformava o verso o poeta parnasiano

e servia-o ainda quente a seus comensais



não importava que não houvesse pão sobre a mesa

e os miseráveis do mundo rastejassem em busca de nada

não importava que houvesse

passos trêfegos brandindo

por justiça pelos caminhos de pedra

que rastejassem os pobres todos

que morressem os miseráveis todos

o vaso grego em suas linhas perfeitas brilhava em alexandrinos

extasiando os olhos da nobreza sem dentes que mordia sem dó



perfeito como uma bagatelle de satie

flautava o verso o poeta simbolista

e soprava-o aos ouvidos nefelibatas

de anjos barrocos em igrejas tortas



não lhe apetecia que houvesse ali na esquina alguém gritando

que a guerra vinha a galope para destruir seus sonhos e arroubos

sons de violões longínquos empanavam volúpias de virgens

e ele não ouvia nem o troar do canhão nem a destruição do mundo

dançavam-se cancãs sobre corpos mutilados e isso era civilizado

o mundo

ora o mundo

que se foda o mundo

a areia movediça travava nas veias a fada verde e o cachimbo de ópio

que fumegasse em cada mesa de bar para o beijo sem fim da prostituta

que o vermute sangrasse os lábios e não os peitos de combatentes

enrolados em bandeiras formadas de calcinhas usadas fossem todos

mergulhar no copo as suas próprias pragas sem olhar para o lado



mal-ajambrado como um foxtrote dançado ao som de jazz

flutua e sofre e dança e pula e rima e não rima e enrola

no verso torto e sem jaça o poeta que se diz modernista

não tem na têmpera o aço das batalhas nem o canto

de musas e anjos do passado ou do futuro e só o presente

arrebenta seus olhos postos diante do mundo oblongo

não está só nem caminha com seus companheiros

pisa bandeiras e estrebucha nas esquinas como os cães

vadios de sua vadia poesia a gritar ao som de violinos

quebrados o som rouco e louco do rock na adrenalina

de - quem sabe - morrer antes dos trinta e virar herói

se pensa no mundo não arrefece a esperança e apenas

desespera diante de sua própria inutilidade diante

do nada e do tudo que é sua infantil e total impotência



assim pelo tempo caminha a mendiga poesia

e mesmo oblíqua em seus caminhos oblíquos

caminha e caminha pelos caminhos do mundo

sonhando tempos que não sejam pesadelos





24.9. 2019 


(Ilustração: Jean-Hippolyte Flandrin) 



(Ouça esse poema, na voz do autor, no seguinte link de podcast:


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