mineirices – 2

 

dizia minha mãe:

- uma fatia de queijo

e um bule de café

lição que sigo até hoje

trocando às vezes o bule

por uma garrafa de vinho

16.4.2020

(Ilustração: foto de Fátima Alves: paisagem mineira, caminhos)

mineirices – 1

 

em criança ouvia de vez em quando

- fulano está numa pindaíba dos seiscentos

pindaíba hoje eu sei bem o que é

mas nunca entendi os seiscentos

16.4.2020

(Foto de Fátima Alves: paisagem mineira)

mina

 

cavouco o buraco do meu peito

em busca de mim como sujeito



e quanto mais me aprofundo

mais me desencontro no mundo



o buraco em que meu ser está contido

traz o estranho gosto convertido

em trilhas de pedra e de sal



robustece-se em mim todo o mal

que o diabo distribui no dia a dia

salvo-me da dor buscando a poesia

29.12.2020

(Ilustração: Tetsuya Ishida)

mexe comigo – 5

 

você – bebê – pagãozinho azul ou rosa –

no colo da mãe

tire a chupeta da boca

bata palminha e arregale os olhinhos

seja espertinho

– esquive-se da bala que podia ser doce

ela pode achar você

esquive-se – sua esperteza, seu engatinhar



você – garoto ou garota

na escola – cuidado – não fiquem

de bobeira na quadra

e quando voltarem para casa

ah – não andem devagar – usem suas asas

que uma bala vinda de não se sabe onde

pode achar vocês





você – rapaz de futuro

você – mocinha inteligente

estudam à noite – trabalham de dia

ouvidos atentos muito atentos

aos noventa e dois tiroteios que ocorrem todo dia

nunca se sabe se um pequeno míssil de chumbo

vai furar a parede do barraco

ricochetear no computador ainda não pago

e atingir os seus sonhos



já dizia o poeta que é preciso

estar atento e forte

que não devemos temer a morte

- mas eu sei que isso hoje aí não adianta

o bebê no colo da mãe não tem

as pernas tortas do anjo torto

a escola dá diploma

não dá asas a seus alunos

o hardware de carne e osso

desmancha-se como folha de papel crepom

balão colorido de são joão esquecido na chuva

quando o software luminoso risca o céu

em noventa e dois tiroteios por dia

na sua cidade maravilhosa

21.10.2020

(Ilustração: foto da internet, sem indicação de autoria)

mexe comigo – 4

 

a babá de branco

a bebê de rosa

a babá preta

a bebê branca

entre a babá preta

e a bebê branca

um laço de ternura



- mãe e filha

- filha e mãe



um dia a bebê branca

terá um bebê branco

e esse bebê branco

terá uma babá preta

18.10.2020

(Ilustração: Prudence Heward, Dark Girl, 1935)

mexe comigo – 3

 

os asilos estão lotados

de velhos abandonados

todos - absolutamente todos –

esse desprezo um dia reclamaram

mas muitos deles já se esqueceram

dos males que fizeram

dos sofrimentos que causaram

13.10.2020

 (Ilustração: Lina Scarfi) 

mexe comigo – 2

 

a grande cidade

está de tal forma composta

que há cidade sobre cidade

ou na verdade

há pobreza sobre pobreza disposta

13.10.2020

(Ilustração: Tarsila do Amaral - São Paulo, 1924)

mexe comigo – 1

sob as palafitas

o mar sobe e desce

sobre as palafitas

a miséria cresce

13.10.2020

(Ilustração: Rocha Maia - palafitas)

meu sonho

 

um dia encontrei meu sonho largado atrás da porta

como um esfregão usado e desprezado

com ele limpara muitos caminhos

com ele já afogueara muitas estrelas

e agora jaz assim desplugado

de qualquer esperança ainda cultivada

sem que com ele se possa de novo limpar

a vida vadia que esse sonho um dia acendeu

12.3.2021

(Ilustração: Manabu Mabe - sem título, 1997)

meu pai

 

meu pai morreu quando eu tinha seis anos

numa idade em que nem sabia o que era a morte

e só muito mais tarde descobri

que era uma ausência aquela morte

apenas ausência

que meu pai morto andava pela cidade

com suas duas pernas de gente viva

e a vida que me dera

multiplicava-se em outros filhos

que não eu

(o filho esquecido de um pai morto que procria)

e essa ausência foi a sombra

que marcou cada passo da minha vida

até que um dia muito mais tarde

meu pai ausente morreu de verdade

senti apenas – baixando os olhos úmidos de uma só lágrima –

que aquela sombra que seguia meus passos

seria agora uma sombra à frente dos meus olhos

e eu nunca mais iria conseguir chorar

nem quando sofri muito pela morte de minha mãe

13.12.2021

(Ilustrção: Mia Mäkilä)