28 de fev. de 2025

Ingratidão

 



Lamentas o tempo

Em que – desatento

Deixaste que a vida

Passasse por ti,

Sem te dares conta

De tudo que apronta

Qualquer desafeto

Que não tenha afeto

Por tua pessoa?



E ficaste à toa

À espera de alguém

Que lhe desse a mão?



Fica certo – irmão:

Pousaste de tonto

E mais que bobão,

Porque neste mundo

Nada mais existe

Do que ingratidão.



16.11.2024

(Ilustração: escultura de Matt Verginer)

25 de fev. de 2025

gato esticado

 




dorme o gato esticado na janela

sob o sol que lhe dá

o alento de vida

para o seu dia de preguiça



estica-se toda a minha mente

na janela da página de um livro

que me dá o alento de vida

para o meu dia

de sonhos e incertezas

alimentado

muito bem alimentado

pelas palavras que unem

as sinapses de meu cérebro

e formam o meu conceito de vida




21.1.20525

(Ilustração: Svetlana Petrova: quadro clássico de Dalí, com gatos)

22 de fev. de 2025

flanar

 


talvez um dia

eu queira fugir

 

talvez um dia

eu queira mentir

 

talvez um dia

eu queira matar

 

talvez um dia

eu queira flanar

 

apenas isso – nem fugir nem mentir nem matar – flanar

 

flanar por entre nuvens e folhas e flores

para amortecer todas as minhas dores


 

22.3.2023

(Ilustração: Dorr Bothwell - o malabarista 1949)

20 de fev. de 2025

ateu renitente

 




às vezes penso que gostaria

de ter a fé dos iludidos

de rezar uma ave-maria

que atendesse meus pedidos



ser crente e pensar que deus

nos deu uma alma imortal

gostaria de rever os amigos meus

num céu de prazer total



choro ao pensar nisso no entanto

porque sou ateu renitente

e esse meu louco pranto

não passa de um repente



logo caio em mim mesmo

e se não sofro ainda mais

é que a mente vaga a esmo

em busca de alguns sinais



sinais de que exista vida além

mas só encontro a natureza

a me dizer ela também

que a vida se esvai com presteza



e que somente de matéria

é feita a vida que vivemos

e esta constatação é muito séria

- nada há depois que morremos





31.12.2023

(Ilustração: símbolo do ateísmo; origem desconhecida)

 

16 de fev. de 2025

falsa moeda

 




no fundo do copo

brilha a moeda

e é preciso beber

toda a amarga bebida

para chegar à moeda

e descobrir

que ela é falsa

- a moeda é a vida





10.12.2024

13 de fev. de 2025

faca em brasa

 



como uma faca em brasa cortando um naco de manteiga

escrevo meus versos

guardo para outros poetas a sutileza e a maciez de palavras doces

e quando os leio e penso que devia escrever assim

logo concluo que esse mundo em que vivo não permite

que amacie meus versos em concerto de piano e violino



prefiro os tambores rudes de troncos de baobás

crestados pelo fogo das savanas africanas



no couro da minha pele há palimpsestos de priscas eras

marcas de dentes de máquinas de servidão

somatizo o sonho inalcançável de igualdades desejadas

desdenho o fogo morto das fábricas de chocolate suíço

viajo em navios de piratas para afundar torpedeiros russos

transporto a água benta que não apaga as dores de hiroshima

colho na floresta amazônica o resto de bálsamo

que os caciques dos ianomami juraram

que limparia do mercúrio as águas dos seus rios



trafego em ruas e avenidas de nova iorque e paris

torcendo o escapamento de minha ferrari para dentro dos narizes

dos capitalistas que se ajoelham diante dos altares do consumismo



inutilmente



perpasso cada passo pela guerra de cada canto

pela fome de cada favela

pelo grito de cada feminicídio

pelo arrocho de cada preconceito

pela fé azeda de quem não confia na ciência



desenho em minha mente um garrote vil

para os garimpeiros

para os caçadores

para os madeireiros

para todos aqueles que cagam em nossos rios

para todos aqueles que poluem nossos ares

para todos aqueles que semeiam a dor da fome pelo mundo

para todos aqueles que batem os tambores da guerra



exorcizo cada ser humano que a peste da violência matou

carregando ombro a ombro com os povos do xingu

o tronco mágico para a dança ritual do quarup



a faca em brasa de meus versos corta a manteiga do desespero

de cada ser humano que o poço da desigualdade engole

e não encontra no fundo do prato qualquer possibilidade

de que um dia os meus dedos percorram a borda do copo de vinho

e o cristal cante um canto de esperança para humanidade



6.3.2024

(Ilustração: Hieronymus Bosch)







7 de fev. de 2025

eu poeta solitário

 





eu poeta solitário

não escrevo poemas de protesto

não escrevo poemas de amor

não escrevo poemas confessionais

- escrevo poemas



sei que sou andorinha

que não faz verão nenhum

porque não me ligo a [nem ligo para]

qualquer modernismo

nem qualquer classicismo

ou qualquer ismo



poeto-me a cada instante

o instante de poetar



não brigo com musas

nem as abraço ou bajulo

leve

livre

solto

solto meus pretensos poemas

para mim mesmo

[como desabafo]

e para quem os quiser ler



foco o meu tempo

no tempo de agora

não desprezo o passado

e até o visito constantemente

nem anseio por futuros que não terei



cumpro a sina de escrever

talvez o que nem todos consigam entender

não me importa que por moto próprio ou alheio

fique anônimo e desconhecido permaneça



não têm fortuna os meus versos

não têm pretensões os meus sonhos loucos

assino cada palavra que teclo na tela do computador

com o compromisso de não me vender



sim – sou de esquerda como qualquer anjo torto

minhas asas de ícaro não temem a queda

nem buscam sóis inalcançáveis

- o oceano da literatura é onde mergulho

e onde nado do jeito que posso

apenas o poeta solitário

a escrever nos poemas tortos

a torta filosofia que me dá na telha





11.11.2024

(Ilustração: foto da internet; autoria não identificada)



4 de fev. de 2025

Eternidade

 



Passam as horas,

os dias,

as semanas,

os meses,

os anos.

Passa o tempo – porque é de sua natureza passar

e deixar para trás nossas vidas que não se alongam

[é o que pensamos]



E por que passa o tempo?

Não passa apenas porque é de sua natureza passar:

o tempo passa porque é filho do movimento.

E tudo no universo se movimenta

– desde as partículas do átomo

dentro de tudo quanto existe

até as galáxias em expansão no infinito.



E só porque tudo,

absolutamente tudo,

se movimenta,

o tempo passa

e leva com ele nossa vida



Se o universo um dia

– por sortilégio de alguma força misteriosa –

detivesse as partículas do átomo

e o girar das estrelas

e a expansão das galáxias,

nós – os humanos – seríamos eternos.



Petrificados em nós mesmos,

mas eternos.






30.6.2026

(Ilustração: Salvador Dalí, Young Woman at a Window: 1925)



1 de fev. de 2025

espanto de viver

 




o espanto de viver se encerra

a sete palmos embaixo da terra

– depois não há – só lembrança

na mente de quem cultiva esperança



o pó do tempo cobre nomes e sobrenomes

– ficam palavras que não foram ditas

como verdades que são escritas

não no granito mas nas pedras-pomes



e a vida que era uma grande festa

– hoje lagarta e logo depois borboleta –

voa seu derradeiro voo sobre o mar e pela floresta

antes de espantar-se sob uma pedra preta



[ou ser sobre a tumba o vestígio de um nome – uma só letra]





10.1.2025

(Ilustração: Horace Vernet - Une tombe en terre d'Afrique)