29 de mai. de 2025

ventos de agosto

 



julho de mais um ano de desgraças se esfuma

- está já quase no fim –

miserável tempo que passa

para os ventos de agosto logo açoitar as folhas das árvores e firmar-se como soberano de um inverno que começou lá em março de 2020 e não há sonho no meu sono capaz de trazer de volta o que o tempo desfaz e não há no verso qualquer sombra de um vulto que me espreite na alfombra de uma tarde

de maciez de seios e coxas

quando sem alarde

seja eu o protagonista renascido

ao abrigo dos ventos de agosto

a provar de um vinho claro e sem mosto

que escorra pelo riacho perdido

entre os teus refolhos

e os teus olhos

de gazela espantada ao tiro do caçador

mas atenta a cada suspiro e a cada estertor

de nossos corpos ardentes a despeito dos frios ventos do inverno e julho se esvai ao meu suspiro e desse suspiro resta apenas mais uma mancha no lençol pela manhã de julho que aos poucos se esfuma pela janela aberta de minha desesperança



19.7.2021

(Ilustração: Marianne von Werefkin, 1860–1938)

26 de mai. de 2025

uma gota de ingenuidade

 




sempre se pode falar

do beija-flor



sempre se pode cantar

o sol a se pôr



sempre se pode gelar

na imaginação

um beijo de amor ao amanhecer



sempre se pode

compor poemas em louvor

às excelências da natureza

o mar

os rios

as montanhas

as florestas



há sim muita beleza

sobre a terra e em suas entranhas

e nós – seres humanos –

não podemos tudo isso ignorar



mas para que todas essas belezas

possam ser realmente cantadas

e louvadas

que nossas misérias

enraizadas em nossa mente

sejam superadas

nem que sejam por encantos

ou encantamentos

que alimentem nossos sentimentos

de ver encontrados

novos meios de viver

novos meios de sobreviver

– finalmente –

com poesia

em harmonia

com o meio-ambiente



10.6.2024

(Ilustração: paisagem mineira, foto de Fátima Alves)









23 de mai. de 2025

uma gata

 




sendo você o que é – meu amor –

uma gata – e das mais safadas –

a saudade de você

no meu peito

é como o pelo do gato:

depois que ele vai embora

fica ainda um gato inteiro

na minha roupa



6.2.2024

(Ilustração: foto de autoria não identificada)

 

20 de mai. de 2025

teu grelo

 





quero esta noite curtir minha insônia

navegar minha imaginação através de rios

remar em pirogas por toda a amazônia

sentir na pele todos os calafrios

de um encontro casual em noite de exílio



compor sonetos de camões e de virgílio

em elocubrações de valsas controversas

dançadas em camas de fogo e gelo

enquanto nos comemos em posições diversas

e tu chupas o meu pau e eu sugo o teu grelo





1.12.2021

(Ilustração: Hans Bellmer - door of perception serie)

17 de mai. de 2025

terremoto


os gatos dormem

o sono de gatos

no sofá da sala

 

tu pisas devagar

bem devagar

 

então tudo treme

 

e tu ouves apenas

o miado

dos gatos

antes

do

fim

 

22.9.2023

(Ilustração: Vanessa Stockard)

  

14 de mai. de 2025

tédio de viver

 




cultivo o tédio de viver que me leva

para um abismo de maus pensamentos

porque no fundo do meu ser impera a treva

e não tenho sossego um só momento



dragões que rugem das regiões profundas

calcinam as pedras dos meus abismos

viram pesadelos os vagidos dos sismos

e só me resta o veneno das águas imundas



falta futuro no meu presente

falta passado no meu futuro

sinto-me de mim ausente

na corda bamba – cada vez mais inseguro



oxalá que no fundo do abismo os dragões estejam atentos

para me livrarem enfim de todos os meus tormentos




13.4.2025

(Ilustração: Zoran Music - nous ne sommes pas les derniers, 1970)



11 de mai. de 2025

tão pouco!

 




pouco a pouco

todo o pouco

que eu tinha

era tão pouco

que esse pouco

virou nada



agora faço pouco

do nada que tenho

e tampouco espero

vir a ter outro pouco

já que pouca

era a esperança

que também

de tão pouca

virou quase nada

nesse pouco de vida

que pouco a pouco

é cada vez mais pouca





22.10.2023

(Ilustração: foto de Brooke Di Donato)











8 de mai. de 2025

sinete

 


um pensamento que veio e se foi

é pluma ao vento – metáfora idiota –

que alimenta o verso

que voa ao vento

leve como o lento

pensamento

na busca da poesia escondida



louca a vida assim decidida

ao balanço da rede

na noite de muita sede

quando no ponto fixo do desastre

das chuvas de verão

o clima esquenta

e o cérebro se desorienta



o pensamento pula de categoria

para o espaço que não existe

e tudo quanto persiste

ensandece e sua

ao calor da pele nua



vento que não veio

é vento que não virá

sobe o desatino de viver

baixa o sonho de sofrer



balança o galho da roseira

não solta pétalas

a flor que já morreu



protege o ninho

o eterno passarinho

que reside no meu peito

por ele voo à toa e sem jeito

de achar o rumo certo

mesmo longe de mim

mesmo perto do meu fim



sou a folha ao vento

[outra metáfora meio besta

que meu estro detesta]

sofro apenas

todas as penas

de quem odeia as paredes

que separam os casais



sofro apenas

todas as penas

de achar que são inúteis

camas que não gemem mais

ao peso dos casais



no despejo das dores

de todos os amantes

não seja o peso do tempo

nas asas loucas do vento

o motivo de sofrimento

de cada jabuti na floresta

que cada enlace vire festa

[mesmo que abraço de jabuti]

e seja o tempo que já vivi

breve lembrança que marca a testa

leve ruga de preocupação



quando o mendigo chuta o cão

que o protege da faca do ladrão

o passo que cruza o paço

marca o caminho do laço

que enforca o assassino



sabemos todos que o sino

que repica na catedral

cada dia todo o ano

para festejar o enforcamento

alerta para o eterno sinal

que tem o coração humano

desde o seu nascimento

- a marca que o impele

a amanhar sempre o mal




2.2.2025

(Ilustração: escultura de Hans Bellmer  - The doll, c.1939)

5 de mai. de 2025

reversão






houve um tempo em que se odiava o frio

e sonhava-se com as tardes quentes de verão



hoje o verão que se nos afogueia também nos mata

e viramos moscas varejeiras em túmulos podres

nas belas tardes que de belas só têm o espectro solar



o temporal que se segue ao forno ligado

traz destruição e morte

e não apaga o sentimento de que o dedo do capeta

está espetado em nossa carne



diz-se que são tempos de extremos

e não há nada que se possa fazer



dizem que o ser humano

queimou a vela do mundo

pelos dois lados

e onde havia calor o calor exacerbou todas as possiblidades

e onde havia frio o frio enregelou todas as consciências



esburacamos terras e mares em busca do que nos move e aquece

e agora não temos como nos mover e vamos ficar tão aquecidos

que não haverá máquina de gelo que nos mantenha vivos



transformamos ouro e a prata e os minérios todos

em bilhões de objetos que entulham os mares

matam os peixes e poluem as águas que bebemos

transformamos em pó as florestas que nos davam respiro

e agora o respiro que temos é o da morte lenta pelos extravasamentos do planeta

que se vinga de nós e tenta se livrar de nós e tenta não morrer em nossas mãos

e por isso nos mata

lenta e sossegadamente o planeta nos mata

para renascer um dia talvez ainda mais belo e mais poderoso que hoje

sem esta raça estúpida que o destrói e se destrói – o ser humano



ah

as tardes quentes de verão

ah

as noites frias de inverno



praias e rios e muitas águas

chocolate quente e histórias antigas



tudo isso será passado

tudo isso se consumiu no desenfreado consumismo

a que nos levou a estupidez do capitalismo



18.2.2025

(Ilustração: François Boucher: fishing in China)

2 de mai. de 2025

quando se manda um conde tomar no cu

 





Tua dignidade, onde está, meu senhor, onde?

No cu do conde,

onde teu avô se esconde?.



Conde, condessa,

barão, baronesa,

príncipe, princesa,

tudo

título de nobreza

dado por quem?

hem? hem? por quem?

por um deus cagão

vestido de roupão

de seda?

ou por um deus pregado

e coroado

de espinho,

sem pena de passarinho,

num triste madeiro?



senhor conde, senhora condessa,

sois, mesmo, herdeiros

de que sangue mais ameno

que azul

de metileno?

o que tem nas veias o barão?

licor de alcatrão?

o que tem na cabeça

essa nobreza?

chifres de ouro?

e o conde, e o cu do conde?

tem menos pregas o cu do conde?



ah! essa nobreza que se esconde,

se esconde onde?

no porão cheio de ratos

ou dentro de lava-jatos

de gasolina azul?



quando se come um conde,

cru ou assado,

com o dedo cruzado

em talheres de ouro,

pode haver maior desdouro

que não lhe respeitar as ventas?



que conde, que nada,

apenas rapadura maltratada

de heranças imbecis;

carne nobre é carne de boi,

dependurada

em ganchos de ouro no açougue

sem glória,

sem história,

de tempos servis;



teu preço em ouro, senhor conde,

onde se esconde, senhor conde,

no teu cu de conde

ou no teu vil porão de grandes castelos?



tua língua oculta, teu semblante vazio,

senhor conde, não cabem em chinelos

do teu desvario:

me diz, senhor conde, vergonha não há

em comer mortadela e arrotar vatapá?

em vestir esses trapos de sujas bandeiras

como se fossem reles trepadeiras

de unhas-de-gato?

brincando de rato, de chato,

coroas de lata,

falsos festins, luas de nada,

nem ouro nem lata.

nem punhal de prata,

teu anel de pedra-pome, onde

seu velho conde? onde?



na campina, um corcel;

no castelo, o bordel;

aqui, seu conde, aqui, ó,

cagando teu ouro,

teu tesouro,

não estou assim tão só:

há, para cada um só conde,

milhares e milhões de bocas

todas loucas, muito loucas,

para te comer, senhor conde,

e milhares de paus e pedras

para te foder, senhor conde,

e tu me perguntas onde?

ora, senhor conde, se me permites

(sim, tu concordas com tudo,

em teus trajes de veludo)

mando-te já, com espinho de mandacaru,

tomar bem no olho do conde,

bem no olho do teu cu.





15.12.2005

(Ilustração: Agnolo Bronzino - Portrait of Cosimo I de' Medici as Orpheus)