28 de abr. de 2024

distantes paisagens








quero olhar para frente

o passado me chama

e me devora

olho minha pegada na lama

das trilhas que pisei

vejo em cada espinho

o retrato de momentos

decantados na secura dos ventos



penso que ainda não logrei

ser o que desejava

como intento de uma vida

esquecido na margem da estrada



crio metáforas de estranhas linhagens

para desculpar o desencanto

do que hoje me tornei



esbarro então nas distantes paisagens

de minhas esperanças inalcançáveis

para gritar o grito rouco dos fugitivos

e o estranhamento da vida a que sobrevivi



semeio apenas os poemas

que não escrevi

e os restos das folhas secas

e das flores murchas que pisei

para aspirar os ares de tempos

que um dia julguei serem felizes



29.11.2022

(Ilustração: Sonali Gangane - full moon)

26 de abr. de 2024

diálogos ateus

 



faço-lhe de surpresa a pergunta:

- durante o orgasmo você pensa em deus?

nesse momento as mãos para o céu ela as junta

e vejo um brilho novo nos olhos seus

e não sei como nem de onde

ela tira sua fé

mas logo me responde:

- o meu gozo vai do fio dos cabelos meus

até o dedão do meu pé

e é quando eu mais sinto a presença de deus

- então você crê que o seu deus

não passa de um espasmo?

- ora, não me venha com argumentos ateus

mas do fundo do meu útero eu acho que deus

é tão somente um orgasmo





11.1.2022

(Ilustração: escultura de Bernini: Extase de Santa Teresa - Detalhe)

23 de abr. de 2024

dia a dia

 


 um quarteto de cordas

acompanha o canto

dos passarinhos

na pitangueira

 

a jabuticabeira em flor

atrai

os zumbidos afinados

os bicos nervosos

dos colibris

 

a manhã transcorre

sem sobressaltos

 

ao almoço preparo

um fetuccine

com bastante molho de tomate

e esvazio a garrafa

do vinho branco espanhol

bem geladinho

- sem me preocupar

com harmonizações

 

deixo que a preguiçosa rede

adocique o meu entardecer

 

 

como um fauno

viúvo de ninfas

enlanguesço-me

 

rabisco versos simples

antes de adormecer

 



13.11.2022

(Ilustração: Ogata Gekko - A young man sleeping and dreams of a young bijin)

19 de abr. de 2024

deus e o diabo

 





o diabo pegou régua e compasso

para medir tudo o que eu faço



então pulei a corda do tempo

para lhe trazer algum destempero

e tive apenas um momento

para mandar ao diabo seu desespero



deus sorriu de minhas falsidades

e encaixou todas as minhas idades



num único tempo de solidão

naveguei no mar de seus escolhos

perdida a bússola e o timão

cego eu e deus de ambos os olhos



gritei para o infinito e o infinito não me ouviu:

mandei deus e o diabo para a puta que os pariu





24.5.2022

(Ilustração: Corrado Giaquinto (1703–1766) - Satan before the Lord c.1750)



16 de abr. de 2024

desígnios palacianos

 


há buracos negros

nos cantos obscuros da terra

e no peito de milhões de cidadãos

 

bandeiras de piratas tremulam

nos olhos cegos de poderosos

 

corsários de olhos aquilinos

lançam sobre o mar de mortes

os escaleres lotados de abutres

 

das covas os fantasmas amargurados

destroçam cruzes que os corsários plantaram

 

há silêncios negros no negrume das salas

e milhões de vazios à luz azul das televisões

 

os jantares ocorrem sobre mesas negras

porque são negros os desígnios palacianos

na noite estendida de fantasmas e corsários

 

1.7.2021


(Ilustração: Adolph Menzel / Adolph von Menzel)

13 de abr. de 2024

desespero

 




o sabiá que canta no meu quintal

canta para anunciar a primavera

não sabe o sabiá que o mundo espera

que seu canto não se cale diante do mal

desse mal que à humanidade consome

muito além do que já sofreu um dia

um desespero além da miséria e da fome

trazido por um vírus numa pandemia





24.9.2020

(Ilustração: Artemisia Gentileschi - Magdalena penitente)

10 de abr. de 2024

desencanto

 

 



talvez eu queira me embriagar

até que meu sangue tenha

todas as cores do arco-íris



talvez eu queira dançar

até que meu corpo se dilua

nas ondas de uma preamar



talvez eu queira gritar

até que minha voz alcance o corno

de uma qualquer lua minguante



talvez eu queira chorar

até que minhas lágrimas virem

vazios lagos de cristal



porque talvez eu seja

o poeta surdo e cego

[que eu nunca fui]

a flanar pelas ruas

da cidade de paris

[aonde nunca fui

nem nunca irei]

talvez eu queira

apenas dormir

e nunca mais acordar




7.3.2024

(Ilustração: Iman Maleki - alone with sea)

7 de abr. de 2024

depois do banho

 


 



vestida de água

ela sai do banho

não é vênus

não é calipígia



suas formas esguias

ondulam

buscam o recato



mas recato não há que a cubra



então ela coleia

num sorriso em brilho de diamante

me beija de leve os lábios

abraçamo-nos



a água

pelos nossos corpos vira pérolas



depois que tudo acaba

estamos exaustos



lá fora a lua

acaba de emergir

também plena

também nua



1.3.2022


(Ilustração: Amtonnine Jean Gros: Diana en el baño)

5 de abr. de 2024

dentro de mim

 




ando vagarosa e silenciosamente pela casa

os passos mal ressoando no piso frio

os olhos atentos a cada detalhe

para assegurar que não há nada de anormal

ou fora de lugar



na penumbra de salas e quartos

não há sombras nem vestígios de vida

tudo é silêncio

e o silêncio tem o peso dos meus pensamentos



- dentro de mim fervilha o vulcão

de sensações e solidões escondidas

nos desvãos de meu cérebro em brasa

- só há silêncio nos meus passos

não há silêncio em meus pensamentos



18.1.2021

(Ilustração: Eric Lacombe - dark abstract portraits)

1 de abr. de 2024

cultivo a minha solidão

 


cultivo a minha solidão como frágil flor na rachadura do muro nascida


pronta – sempre – para alargar o seu espaço até se tornar árvore

mesmo à pouca chuva sujeita

mesmo contra o sol radiante

mesmo contra a lagarta faminta

cultivo-a sempre assim ao meu peito arraigada – planta daninha

que me fortalece ao tempo que me suga momentos de vida



seja a minha solidão como a eterna companheira

que – mesmo arrancada de vez em quando – renasce sempre

quando preciso de mim mesmo no meu desconsolo de viver



24.4.2020

(Ilustração: Alméry Lobel-Riche (1880-1950): Le Bord du Lac - 1900)