30 de nov. de 2024

renascimento

 





inúteis paisagens criadas

no fundo de meus pensamentos

são surpresas encantadas

de muitos cantos e lamentos



nos abismos de minha mente

encontro nesses espantos

pedaços de loucos cantos

e o florescer da semente

de prantos e desencantos

inventados somente

para que sobreviva

o espanto de viver

e que esta vida seja

como a madressilva

um pedido do deus

a nascer e florescer

para os dias meus

mesmo que no prado

queimado

- um espanto não esperado

das cinzas a renascer





10.6.2024

(Ilustração: Frederick Edward Hulme, honeysuckle)


Você pode ouvir esse poema, na voz do autor, ISAIAS EDSON SDINEY, num destes endereços:

- no You Tube:


- no podcast:

27 de nov. de 2024

rastros no tempo







quanto tempo faz

que eu não vejo estrelas

no céu

dos teus olhos fixos em mim



quanto tempo faz

que eu não escuto teus gemidos

durante

um orgasmo emocionado



quanto tempo faz

que eu não busco o descaminho

nas noites

de nossos abraços bem trançados



o tempo – meu amor –

e meus hormônios

têm deixado um rastro de pés atados

na estrada de nossos desejos



21.3.2023

(Ilustração: Egon Schiele: female nude lying on her stomach, 1917)

22 de nov. de 2024

quando solto meus poemas

 


os poemas que existem presos dentro de mim

não os solto senão depois de verificar muito bem suas intenções

que não tenham a doce malícia de traficantes

que não tenham a vergonha escarnecedora de melífluas virgens

sejam principalmente sinceros em seus poéticos fingimentos

sejam pouco arrogantes em propagar suas verdades

saibam tocar as teclas de minha sensibilidade

com mãos de mulher que nos acolhe com tesão

 

solto-os - aos meus poemas - como aves

em busca de ninhos entocados dentro de nuvens de chuva

que suas penas voem com o vento

que seu canto se perca nos mares

não importa

que sejam eles o meu guia no nevoeiro da vida

ainda que suas metáforas desafiem meu gosto

 

posso entendê-los como filhos que correm o mundo

e mandam de vez em quando uma mensagem numa garrafa

uma mensagem que talvez nunca chegue a seu destino

porque anseia por marés de plenilúnio em portos ignotos

 

aves de canto breve ou de longos trinados

meus poemas marcam como pegadas de suçuarana

a minha caminhada sobre as areias movediças desse mundo

se os solto sem que tenham bem claras suas intenções

pesarão sobre mim suas asas malformadas

e como Orfeu na barca de Creonte

não poderei jamais ouvir de novo o canto de minha Eurídice

nem sonhar com desencontros inusitados nos jardins de outrora


 

11.7.2023

(Ilustração: Claude Monet)



18 de nov. de 2024

quando morre um amigo querido

 





para wagner mourão brasil

(1945-2023)





no fundo do vale profundo soam os passos lentos

do meditabundo caminhante

rasgam-lhe os pés as rochas pontiagudas

sob as águas mansas do rio negro

sobejam espantos em seus olhos fundos

cercados de sombras das altas falésias

rochas lisas e amarelentas

corroídas em suas alturas imensas

pelos bicos de agourentas aves

em seus voos rasantes de rapinagem

seus gritos cortam o ar no antegozo do sangue fresco

do combalido caminheiro em si mesmo enrodilhado

nos sombrios pensamentos de vida e de morte

não há sombra que o acompanhe

queima-lhe a cabeça a brasa do sol a pino

e as águas turvas do rio negro não lhe são refrigério

o sangue dos pés leva-o a correnteza

para um tempo que não virá



solitário

a solidão arranca-lhe do peito os suspiros

que lhe sabem perdas do outrora

acumuladas há muito às perdas do agora

sofre o caminheiro a canícula do abandono

sofre o caminheiro a descrença da chegada

abraça-o apenas a pedra rude

o corpo pesado de fantasmas roça-lhe o espinheiro

caminha

apenas caminha

o rio é sua estrada e corre para o mar

o rio é seu martírio e ele – o enlutado caminheiro –

sabe que seu destino é não lá chegar

mas ele caminha – caminha carregando a solidão

devagar

bem devagar

caminha

no vale profundo

que será de ora em diante seu fiel companheiro





4.7.2023

(Ilustração: El Greco - the burial of the count of Orgaz, 1586-1588)

15 de nov. de 2024

possibilidade






há uma lua negra nas paisagens de minha mente

sigo pelos caminhos pitagóricos das hipotenusas

cobertos de urtigas que me arranham

de pedras rascantes que me ferem



serpenteio entre terremotos na busca de luzes que não brilham

imagino-me estrela vespertina a seguir o chifre da lua negra

na busca de mim mesmo nas trilhas dos meus vales profundos



talvez o vento pare por um instante

talvez o passo não pise a pedra

e o espasmo de espanto morra na garganta

talvez o tempo – sempre ele – traga a brisa

do amanhecer de uma nova tranquilidade





11.3.2023

(Ilustração> Chris Moêt - Under the Black Moon)

12 de nov. de 2024

porque vivo





entre as sinapses de meu cérebro

onde estão todos os meus pensamentos

por onde transitam todos os meus sonhos

construo lembranças que não vivi

esperanças que não mais existem

e momentos que somente a poesia

- essa estranha visitante de meu cérebro –

tece nos meandros de imaginações sofridas

nas tramas e urdiduras de meus desejos



é ali – entre as sinapses de meu cérebro –

que vivo a minha vida na maior parte do tempo

temendo e ardentemente desejando

que essas ligações misteriosas não se rompam jamais

que somente ela – a poesia – é capaz de fazer da minha vida

um constante pulsar de sonhos e emoções incontidas

e é por ela e para ela – a poesia – que vivo e sobrevivo





27.7.2024

(Ilustração: Angela Oooghe - swimming nude)

9 de nov. de 2024

pequena carta para manuel bandeira

 






caro poeta do século vinte

escrevo-te malpassadas linhas

para lembrar-te que não esqueço

teu poema espantado

e dizer-te que os tempos mudaram

meu poeta – para este tempo que te conto assim:



sob a chuva chapinha o bicho os pés na enxurrada

deserta a rua

por detrás dos grossos vidros escuros do apartamento

olhos vermelhos de espanto espiam

o bicho em seu caminho fuçando latas de lixo



de dentro dos salões apagados

dedos angustiados

teclam teclas coloridas

segue o bicho seu trêfego caminhar

[pausa o tempo no tempo de buscar]



estraçalha o silêncio um estampido



luzes se acendem

janelas e portas se abrem

a chuva cessa

buzinam os carros

correm as gentes

chega o camburão

jogam dentro dele o corpo do bicho



suspiram donzelas pelas janelas

[e donzelas nas janelas – meu poeta –

são o escracho deste meu tempo

de bites e bytes]

porque o bicho não era bicho

- espantado poeta do século vinte –

o bicho era apenas

um pobre preto da periferia



termino meus malpassados versos

- caro poeta – dizendo-te que teu tempo

ao meu tempo se mistura

sendo o mesmo tempo em tintas outras

mais negras – poeta – mais negras






12.7.2023

(Ilustração: Judit Reigl - Les Huns - 1964; foto de André Morin)


Ouça esse poema, na voz do autor, ISAIAS EDSON SIDNEY, num destes endereços:

- no pocast:


- no you tube:


O poema de Manuel Bandeira, O BICHO, pode ser lido neste endereço:

6 de nov. de 2024

pedriscos de lua


luneiro sem eira nem beira

rapo o pé e entro em casa

sujo da poeira das estrelas

cansado de sonhos vãos


penso na solidão da lua

e sei que ela – a lua e sua solidão –

vai estar comigo durante a noite

de insônia ou de sonhos loucos


e porque sou luneiro de rua

e porque sou luneiro de cama e mesa

escrevo versos com pedriscos de lua


 

8.11.2023

(Ilustração:  Angelame - Pleine lune)

 

 

  

3 de nov. de 2024

Cantiga de amigo

 




Ah senhores, senhores da internet

Buscai o meu amado

Buscai-o por este vasto mundo

Perdido está o meu amado

Onde estará? Onde?



Ai senhores, senhores dos bites e bytes

Mandai notícias de meu homem

Dizem que hoje ninguém mais some

Neste vasto mundo de redes sociais

Onde estará ele? Onde?



Ai senhores, senhores das redes neurais

Dizei-me vós em qual porto,

em qual porto se esconde o meu amado?

Londres, Roma, Amsterdam?

Estará ele ainda vivo ou já morto?

Ai senhores, dai conta de meu amado

Não deixeis para amanhã

Buscai hoje o meu amado

Que nosso filho completa já seis meses

E ele não cumpriu o que foi tratado.



Ai senhores, senhores de todas as redes

Se o filho é meu é dele também

Precisa ser pela lei reconhecido e registrado

Pois foi esse entre nós o combinado.

Onde, onde está o meu amado?



- Embarcou ontem mesmo da Austrália

Para destino ignorado

Num navio petroleiro pirateado

Perdido está pelo oceano imenso

Não temos mais como rastrear

Seu celular está suspenso

Em todas as redes de telefonia



Ai senhores, senhores de todos os saberes

O que será de nosso filho sem futuro

Não tenho na vida mais prazeres

Que não seja pensar no meu amado

Que maus ventos não o prendam

Para sempre num rumo mal traçado

Não tem mais crédito meu celular

E só lhes posso escrever nessa tela

mais uma única palavra – obrigado!



Ai, flores, ai flores do verde pinho.

Se sabeis novas de meu amado,

Ai, meus deuses, onde ele está?



14.6.2024

(Ilustração: Alyssa Monks)


Você pode ouvir esse poema, na voz do autor, ISAIAS EDSON SIDNEY, nos seguintes endereços:

- podcast: 


- you tube: