30 de jan. de 2025

dois destinos

 


ao aguar no jardim as suas flores

deságua o jardineiro as suas dores

 

ao despejar um verso apenas na página branca

o poeta o seu ser mais profundo destranca

 

as flores – leva-as o vento um dia

o ser do poeta permanece na poesia

 

assim jardineiro e poeta cruzam um com o outro seu destino

o jardineiro – talvez feliz com o tal vento repentino

já o poeta – à poesia tem para sempre enlaçado o seu destino

 

 

25.11.2024

(Ilustração: Claude Monet - nenúfares)

26 de jan. de 2025

mandacaru

 


verde que te quero forte

estrela em gomos de espinhos

a flor delicada e branca

em contraste

ao verde que resiste

à chuva e ao sol

ao vento e ao mormaço da tarde

e ao sereno da noite



raízes no barranco

cerca viva que não cerca a morte

lenta a tua vida verde

lento o teu despertar

ao sol e à chuva



ao vento não vergas

branca e bela

tua flor cor de lua

brilha mais que a lua cheia

o teu verde verdeja o vento

que passa e sibila pela noite

no ar o perfume flutua



depois de morta pétala a pétala

tua flor já murcha pela manhã



morre a flor – tua vida continua

como sempre teu verde seco

como sempre tua altivez

ao sol e à chuva tu resistes

meu belo mandacaru

resistes tanto que eu quero

e só o que mais espero

ser um dia como tu




20.2.2023

(Ilustração: Adriano Santori - flor de mandacaru)



Ouça esse poema na voz do autor, ISAIAS EDSON SIDNEY, num destes endereços:

- no podcast do Spotfy:


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23 de jan. de 2025

doce de leite

 




numa tarde nem fria nem quente

de pleno outono talvez

[mas pode ser tarde de verão

ou de qualquer outra estação]

nada penso que me apoquente

e quero apenas a levez

de algo que na minha língua se ajeite

como um gato num cesto de linho

como os dedos numa viola de pinho



o sabor mineiro do doce de leite





14.6.2024

(Ilustração: doce de leite - foto de Arnaldo Silva)

20 de jan. de 2025

desalento arretado




a vida é assim: de vez em quando

num susto de fim de tarde

numa lembrança maldita durante a noite

num abrir e fechar de olhos para a merda

vem

um surto

uma fossa

um desespero

o fundo do poço



aquele nó na garganta

aquele choro que não chega

o aperto no peito

um desalento arretado

e a vontade de jogar tudo para o alto



para subir de novo à superfície

para de novo a mente voltar ao normal

para a paranoia ir pra o raio que a parta

nada melhor do que ouvir um som no último volume

um tango argentino

um samba bem rasgado

um rock sem limites

um xaxado arrenegado

ou então

um clipe de johnny hooker




13.10.2024


17 de jan. de 2025

consciência

 


meus ídolos já morreram,

estão velhos ou estão morrendo

e isso bate direto no peito

porque percebo que não tem jeito:

- eu estou encanecendo!

 

caminho pelo quintal lentamente

para não tropeçar no gato que enreda entre minhas pernas:

não posso – a essa altura da vida – levar um tombo

[e todo e qualquer velho sabe por quê]

e é isso o que me aborrece – pensar antes de dar um passo

pensar antes de fazer qualquer besteira

 

muitos amigos da minha idade

estão morrendo

e isso mexe com meus instintos

e mexe com minha sanidade

- eu estou envelhecendo!

 

leio muito – leio de tudo

para manter a mente funcionando

e quando escrevo os meus textos

eu às vezes percebo que algumas palavras

que eu quero usar

demoram mais para chegar à memória

ou tenho que usar artifícios para encontrá-las

 

morrer é contingência da vida

só não é o susto que me dá o pensar na morte

se tive assim alguma sorte

de sobreviver ao tempo e ganhar sobrevida

tenho que cuidar do agora

e sonhar com o tempo que me resta

de tal forma que não vá antes

do que eu quero seja a minha hora

e deixar de alimentar qualquer ideia mais funesta


 

7.4.2024

(Ilustração: Gustave Caillebotte)

12 de jan. de 2025

concerto para flauta e orquestra

 





lavra o lábio à flauta em busca do som

e o vento que vem do âmago do músico

cria o alento do voo mágico

- o sonho se faz som

e o som sonha o suave pranto da lua



- a sala de concerto torna-se plenitude do espanto

ao voo elegante de sons de vento

mirificadamente enevolados em sons de sonhos

sonhos de vagas vidas veladas vagando

em busca da esperança que dança nas tranças bem trançadas

de destinos improváveis



ao som da flauta que os lábios assopram

a sombra da paz perpassa pelos anseios vívidos

de vidas que pulsam e flauteiam à sombra do vento



no silêncio da orquestra – o suspense de futuros

no suspense da plateia – o espanto do arrepio



quando tremem os lábios do flautista

à nota agudíssima que finaliza o concerto

– freme a plateia ao aplauso que desperta

para que o sonho do vento se concretize

– há esperança na noite em cada janela que se apaga



[plagio mais um poeta: o homem sonha a poesia nasce]




2.9.2024

(Ilustração: George Frederic Watts - Hope, 1897)


Ouça esse poema na voz do autor, ISAIAS EDSON SIDNEY, num destes canais:

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11 de jan. de 2025

alteridade

 




quero às vezes contemplar um lago sereno

quero às vezes navegar por um rio caudaloso

quero às vezes perder-me numa floresta tropical

quero às vezes flanar pelas ruas da grande cidade



isso é minha alma peregrina dentro de mim

(eu que não acredito em alma)

a pedir que me aventure por lugares que não conheço

a pedir que saia de minha casca de ovo – a minha casa –

e me liberte de mim mesmo pelos ares do tempo

pelos ares das estrelas ou pelos caminhos das montanhas etéreas

e me perca de vez nos escaninhos de um planeta inabitado

mesmo que esse planeta esteja girando a milhões de anos luz



mas vivo dentro de uma bola de gude e sou apenas

aquele que olha o tempo e sabe que ele só me faz sofrer





30.11.2023

(Ilustração: escultura de Anish Kapoor, Dismemberment)


8 de jan. de 2025

ailurofilia

 





encontrei afinal um amigo

que me fez mais humano

nunca briga comigo

mas não passa pano

nas bobagens que faço



quando tudo parece perdido

aperto-o num gostoso abraço

que é tudo que mais tenho querido

desse silencioso amigo

a quem sou muito grato

porque me fez pensar diferente

e respeitar cada ser vivente



esse amigo de fino trato

em silêncio – grande pensador

que nunca podia supor

e agora reafirmo este fato

– que encontrei muito amor

nos olhos claros de meu gato





3.1.2025

(Ilustração: Theo, foto do autor)





5 de jan. de 2025

águas que sobem

 





quando as águas sobem

levam tudo que os pobres não têm



será que um dia

as águas vão subir

e bater na bunda dos ricos



quando as águas subirem

e baterem na bunda dos ricos

e levarem uma pequena parte

daquilo que os ricos têm

o que será que os ricos vão fazer



quando as águas sobem e levam

tudo aquilo que os pobres têm

o que fazem os pobres

depois de sentar e chorar

todos nós sabemos



depois que as águas baixam

deixando ainda mais pobres os pobres

de quem elas – as águas – levaram tudo

os pobres fazem mutirões

recolhem donativos

reconstroem suas pobres casas

reconstroem seus pobres barracos

e esperam a próxima cheia

[não têm os pobres outra opção]



e os ricos – o que fazem os ricos

quando sentem que as águas

subiram e bateram em suas bundas

levando parte – pequena parte –

de tudo quanto possuíam

[coisa que – convenhamos –

é muito difícil de acontecer]



ah os ricos! – os ricos tiram

seus traseiros gordos

das cadeiras de chefe

das poltronas de veludo

pegam seus iates gordos

navegam pelas águas gordas

com sorrisos de escárnio

bebericam uísque doze anos

dançam

festejam

e pescam dourados engordados

pelos restos que vieram

das cheias de todos os pobres

[não têm os ricos outra opção]



8.11.2024

(Ilustração: Cássia Brizolla - a enchente na Vila Pantanal)



Ouça este poema na voz do autor, Isaias Edson Sidney, nestes endereços:

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