29 de jun. de 2016

Trova - tenho o sol na ponta da língua




(Katy Bailey - twisted angels)



tenho o sol na ponta da língua

para secar o teu orvalho

mas tua umidade não míngua

nem mesmo com o meu caralho





28.6.2016


28 de jun. de 2016

entardecer





(Mondrian Piet)



cochila o sol sobre o muro

um velho bêbado a caminho do nada

a tarde morna esfria gradualmente

o outono com jeito de inverno

nada justifica a preguiça imensa

com que o frio vento vem aos poucos

envelopando a cidade que adormece

entorpecida ao sol morno e mole

morrendo sobre o muro

– aos poucos

aos poucos

19.6.2016


27 de jun. de 2016

Trova - vivo melhor à noite





(Salvador Dalí)





vivo melhor à noite

do que durante o dia

à noite é que recebo

visita da poesia




9.5.2016

23 de jun. de 2016

ouve as águas


(Claude Monet)







ouve as águas que correm

riachos pequenos

rios plenos

até ondas de falsos mares



ouve apenas

e deixe que corram

as águas

as águas

que correm sobre a terra

as águas

que correm para o mar




16.6.2016

22 de jun. de 2016

ave maria



(Loic Allemand)




ave maria cheia de penas

o espaço é vosso altar

maria que é ave e ave a voar

solta tuas cantilenas

nas noites de luar

ave maria cheia de penas

noturna ave a cantar

no meu leito de açucenas

ave maria sem pudores

no meu leito a gozar

as penas de muitos amores



16.6.2016



21 de jun. de 2016

simples o meu poema




(Francine van Haven - L'Heure Bleue)






simples


simples assim


nasce o poema


sem atavios


sem metáforas


palavras apenas


apenas palavras


ao vento lançadas


palavras de amor


de saudade


ou apenas


um simples


muito simples


pensamento


ou mesmo sentimento


de prazer


ou de vida


apenas isso


simples


simples assim


o poema


o meu poema





18.6.2016

20 de jun. de 2016

ser humano




(Danse macabre - autoria desconhecida)





nasce o ser humano

inacabado

e morre sem nunca

ter sido terminado





10.6.2016

19 de jun. de 2016

Para Abujamra(*)




(Antônio Abujamra, por Francisco Ucha)

(in memoriam)




No que está pensando o açougueiro,
enquanto corta a carne?
Enquanto corta a carne,
o açougueiro pensa
na carne que está cortando.

No que está pensando o pedreiro,
enquanto ergue a parede?
Enquanto ergue a parede,
o pedreiro pensa
na parede que está erguendo.

No que está pensando o alfaiate,
enquanto prega o botão?
Enquanto prega o botão,
o afaiate pensa
no botão que está pregando.

No que está pensando o poeta,
enquanto escreve o poema?

Ah! O poeta
é um ser tão extraordinário,
tão diferente de todos os outros seres,
que, enquanto escreve o poema
o poeta pensa
no poema que está escrevendo.

14.6.2013





(*) Antônio Abujamra (Ourinhos, 15 de setembro de 1932 — São Paulo, 28 de abril de 2015) foi um premiado diretor de teatro, ator e apresentador brasileiro, sendo um dos primeiros a introduzir os métodos teatrais de Bertolt Brecht e Roger Planchon em palcos brasileiros. Era conhecido por sua irreverência, suas encenações e por seu humor ácido e crítico em relação aos tabus sociais.

16 de jun. de 2016

meu poema


 
(Paul Klee)



tanto vale o verso versificado
quanto o conceito em metáforas
semioculto ou semirrevelado
aprecio mesmo a rima
eventualmente surgida
ao correr do verso limpo
a palavra clara e simples
o sentimento cristalino
na tela do computador
assim como a manhã de sol
depois de noite chuvosa
(não importa se desgastada
a tal comparação)
o verso direto
discreto
a traduzir ideias às vezes
simplórias
sem anseio por altas glórias
e panteões
o verso solto e revolto
muito longe das academias empoeiradas
torna-se assim poema
o que eu considero e chamo de poema
nada mais nada menos
mesmo que derrape de vez em quando
em jogos de ocultar
a palavra dura a martelar
a consciência
ou o verso frouxo a alimentar
os sentimentos mais estranhos
deixo o poema voar e passarinhar
já basta o poeta preso em si mesmo
sem nunca poder realizar
aquilo que vive a sonhar
que sonhe o verso que voe o poema
e fique eu aqui para sempre
esperando o que vida nunca vai me dar


9.6.2016



15 de jun. de 2016

manhã




(Jacques Majorelle - 1886-1962 - beauté africaine)





pode ser que o sol se levante


por detrás de tuas ancas


pode ser


no entanto o meu desejo


há muito te busca o sol


e as ondas do meu ensejo


de possuir-te inteira e bela


depende apenas de uma manhã


de uma manhã de sol


em que te levantes enfim


dos meus braços para


os braços do sol



junho/2016

13 de jun. de 2016

fases da Lua




(Sergei Aparin - morat)




tem fases a Lua
que flutua no espaço
balão à Terra preso
por caprichos da natureza
tem fases a Lua

também os homens
também as mulheres
presos à Terra
por caprichos da natureza
têm suas fases
como a Lua


11.6.2016

12 de jun. de 2016

penso em endívias




penso em endívias

ao acordar no meio da noite

de um pesadelo famélico




penso em endívias

como poderia pensar em pedras

no meio do caminho




penso em endívias

como solução para meus

desesperos e tristezas




talvez ninguém possa

imaginar o que passo

nem o sonho sonhado

nem o sonho angustiado

enrolado

apertado

o peito em chamas




se penso em endívias

é porque meu cérebro

está de repente em palpos de aranhas

buscando o que

talvez nem saiba bem

se a felicidade

se a esperança

se a vontade de que

tudo acabe em endívias ao jantar

com vinho branco à mesa




são estranhos os caminhos

são absurdos os destinos

são excludentes as esperanças

não creio em nada

somente em endívias

servidas com patê de queijo

e vinho branco

como alívio àquilo

que alívio não tem

é só isso

só isso

isso apenas

endívias

e nada mais

nada

nada

nada

mais


26.5.2016

(Ilustração: Jeffrey T. Larson - Endive)


Ouça esse poema na voz do autor, ISAIAS EDSON SIDNEY, nos seguintes endereços:

- no podcast:


- no You Tube:

11 de jun. de 2016

incapaz



(Rysselberghe)





volto pra casa com


teu gozo recolhido


lembro cada detalhe


de teu corpo despido


e incapaz de recordar


a cor do teu vestido



22.5.2016

10 de jun. de 2016

para Cecília



(Cecília, por Bassani)




“com a noite em meus braços”
penso em ti
Cecília de viagens inefáveis
visitante etérea
de tempos não administrados



4.6.2016

8 de jun. de 2016

Má poesia




(Zurbarán)




Não me importa se escrevo
má poesia.
Importa-me - e muito –
quando não escrevo
um poema por dia.



15.4.2016

6 de jun. de 2016

Trova - sabe a banana da terra











Sabe a banana da terra


cada verso que componho:


a casca amarela encerra


toda a massa do meu sonho.




4.6.2016

5 de jun. de 2016

fatuidade





(Aleah Chapin - Jumanji and Gwen)




lá na capital
políticos
empresários
e quejandos
brigam entre si
para dividir
o botim
do poder

enquanto isso
na nudez de seu quarto
na pobreza de seu tugúrio
o poeta
o que faz?

o poeta liga o rádio
para ouvir o concerto
número um para piano
e orquestra
de tchaikovsky

e o que mais faz
o poeta?

o poeta tira
meleca do nariz
e pensa
e escreve
sobre
a
fatuidade
da
vida

24.5.2016



2 de jun. de 2016

Madrugadas




(Jeremy Mann - Night Rains in San Francisco)





O barulho da chuva forte


Acordou-me de madrugada:


Pensei que fosse a morte,


Mas não era, não era nada.






O barulho da chuva forte


Acordou-me de madrugada:


Pensei que fosse a sorte,


Mas não era, não era nada.

2.6.2016





1 de jun. de 2016

A MINHA FRUTA PREDILETA



(Foto da internet, s/indicação de autoria)



Das frutas que eu gosto, em primeiríssimo lugar está essa negrinha safada que já nasce agarrada a um pau e que se desmancha em gozos líquidos em nossa boca – a jabuticaba.

Sim, tenho com ela uma relação que vai além do prazer de chupar e cuspir o caroço; de sugar seu sumo e deleitar-me profundamente com uma grande quantidade de frutos. Tenho com a jabuticaba uma relação de erotismo gustativo e emocional que beira o fetiche. Ainda bem que essa negrinha redonda e brilhante é uma bola de gude, pequenez que não admite outras práticas que não o chupar e deliciar-se, porque seria eu um tarado a buscar outras formas de amor com ela.

Acompanha-me a danada desde a mais tenra infância, em terras mineiras, na cidade de Lavras. No quintal de minha casa, havia duas belas e já antigas jabuticabeiras, dessas que frutificam uma vez por ano apenas, mas de forma escandalosa, desde a raiz descoberta na terra até a última rama. Cobria-se primeiro de branco, a atrair a polinização de centenas de abelhas e depois explodiam os frutos que enegreciam pouco a pouco, num festival de prazeres antecipados, geralmente nos meses finais do ano.

Nessas jabuticabeiras cresci pulando de galho em galho, nos demais meses, principalmente na árvore maior, mais robusta e de galhos fortes e abertos, que permitiam que eu e meu amigo Vitório pudéssemos circular como micos, voando em volta de toda a árvore. E mais: havia galhos a que nos sentávamos, como se tivéssemos na cabina de um avião. Talvez, dessas traquinagens tão precoces, aos sete, oito anos, tenha nascido em meu amigo o sonho de se tornar piloto, o que ele, enfim realizou muitos anos mais tarde. Meu saudoso e querido amigo Vitório. Deixo aqui uma lágrima, por sua perda. Sigo em frente, mesmo com o coração apertado de saudade.

Histórias de jabuticabas. Duas que me marcaram. A primeira teve a ver com um cãozinho que tínhamos, na época, e que nos acompanhava em nossas travessuras. Um dia, obriguei-o a provar da jabuticaba. E não é que ele gostou? Gostou tanto, que foi à jabuticabeira e fartou-se dos frutos mais baixos. Foi um deleite para nós, uma farra. O pior – para ele – veio depois: a dor de barriga, provocada pelo temível caroço da jabuticaba. Passou o coitado vários dias a comer um tipo de capim, que lhe aliviava as cóleras. E, quando sarou, se lhe mostrávamos uma só jabuticaba, saía voando a se esconder em qualquer canto. Para ele, jabuticabas nunca mais.

A segunda (até já escrevi um conto sobre a situação) aconteceu comigo e com Vitório. Não satisfeitos com as jabuticabeiras de nossa casa, resolvemos provar os frutos do vizinho, num terreno em que havia apenas um grande chiqueiro, cujos porcos eram tratados por um homem enorme, que vinha toda tarde trazer-lhes a lavagem e limpar o local. Lá em cima da jabuticabeira, eu e Vitório esquecemos a hora, a vida, tudo. E, claro, fomos surpreendidos. O tal sujeito deu comida aos porcos, limpou o chiqueiro, tudo muito calmamente, enquanto nós dois, lá em cima, paralisados de susto e medo, não ousávamos nem estourar a última jabuticaba que estava em nossa boca, para não fazer barulho. Em vão. Terminado o serviço, o homenzarrão virou-se para nós e disse que ia nos dar uma sova. Enquanto procurava – ou fingia procurar, agora nem sei mais – um pedaço de pau, despencamos eu e Vitório árvore abaixo. E nunca corremos tanto em nossa vida. Creio hoje, passados tantos anos, que só queria nos dar um susto o homem dos porcos, porque, primeiro, cidade pequena, todos se conheciam, e ele sabia bem quem éramos; segundo, o danado era casado com uma das minhas primas! E então, era só mesmo a vontade de nos pregar uma peça. Já que as jabuticabas daquelas árvores quase ninguém se aproveitava delas. Só os passarinhos. E nós, eu e Vitório, mais gulosos que os pássaros.

Tudo isso são memórias. Memórias longínquas. Vivo hoje em São Paulo, onde não há quase nenhuma possibilidade de trepar a uma jabuticabeira, para gozar do prazer supremo que é chupar jabuticabas colhidas diretamente da árvore. Tenho em meu quintal um pé, mas as jabuticabeiras são árvores lentas, que requerem várias condições – que não existem, aqui – para que cresçam e frutifiquem. Também comprei uma muda de enxertia, dessas que frutificam rápido, e plantei-a num vaso. Num vaso! Dá alguns frutos, de vez em quando, que disputo com os sabiás e bem-te-vis marotos, aves de cidade grande, que não perdem a oportunidade de saciar – como eu – sua vontade de um fruto tão delicioso como a pretinha safada chamada jabuticaba, colhida ou chupada diretamente da árvore, mesmo num quintal cercado de muros da cidade grande.
1.6.2016