(Foto da internet, s/indicação de autoria)
Das frutas que eu gosto, em
primeiríssimo lugar está essa negrinha safada que já nasce agarrada a um pau e
que se desmancha em gozos líquidos em nossa boca – a jabuticaba.
Sim, tenho com ela uma
relação que vai além do prazer de chupar e cuspir o caroço; de sugar seu sumo e
deleitar-me profundamente com uma grande quantidade de frutos. Tenho com a
jabuticaba uma relação de erotismo gustativo e emocional que beira o fetiche.
Ainda bem que essa negrinha redonda e brilhante é uma bola de gude, pequenez
que não admite outras práticas que não o chupar e deliciar-se, porque seria eu
um tarado a buscar outras formas de amor com ela.
Acompanha-me a danada desde
a mais tenra infância, em terras mineiras, na cidade de Lavras. No quintal de
minha casa, havia duas belas e já antigas jabuticabeiras, dessas que frutificam
uma vez por ano apenas, mas de forma escandalosa, desde a raiz descoberta na
terra até a última rama. Cobria-se primeiro de branco, a atrair a polinização
de centenas de abelhas e depois explodiam os frutos que enegreciam pouco a
pouco, num festival de prazeres antecipados, geralmente nos meses finais do
ano.
Nessas jabuticabeiras cresci
pulando de galho em galho, nos demais meses, principalmente na árvore maior,
mais robusta e de galhos fortes e abertos, que permitiam que eu e meu amigo
Vitório pudéssemos circular como micos, voando em volta de toda a árvore. E
mais: havia galhos a que nos sentávamos, como se tivéssemos na cabina de um
avião. Talvez, dessas traquinagens tão precoces, aos sete, oito anos, tenha
nascido em meu amigo o sonho de se tornar piloto, o que ele, enfim realizou
muitos anos mais tarde. Meu saudoso e querido amigo Vitório. Deixo aqui uma
lágrima, por sua perda. Sigo em frente, mesmo com o coração apertado de saudade.
Histórias de jabuticabas.
Duas que me marcaram. A primeira teve a ver com um cãozinho que tínhamos, na
época, e que nos acompanhava em nossas travessuras. Um dia, obriguei-o a provar
da jabuticaba. E não é que ele gostou? Gostou tanto, que foi à jabuticabeira e
fartou-se dos frutos mais baixos. Foi um deleite para nós, uma farra. O pior –
para ele – veio depois: a dor de barriga, provocada pelo temível caroço da
jabuticaba. Passou o coitado vários dias a comer um tipo de capim, que lhe
aliviava as cóleras. E, quando sarou, se lhe mostrávamos uma só jabuticaba,
saía voando a se esconder em qualquer canto. Para ele, jabuticabas nunca mais.
A segunda (até já escrevi um
conto sobre a situação) aconteceu comigo e com Vitório. Não satisfeitos com as
jabuticabeiras de nossa casa, resolvemos provar os frutos do vizinho, num
terreno em que havia apenas um grande chiqueiro, cujos porcos eram tratados por
um homem enorme, que vinha toda tarde trazer-lhes a lavagem e limpar o local.
Lá em cima da jabuticabeira, eu e Vitório esquecemos a hora, a vida, tudo. E,
claro, fomos surpreendidos. O tal sujeito deu comida aos porcos, limpou o
chiqueiro, tudo muito calmamente, enquanto nós dois, lá em cima, paralisados de
susto e medo, não ousávamos nem estourar a última jabuticaba que estava em
nossa boca, para não fazer barulho. Em vão. Terminado o serviço, o homenzarrão
virou-se para nós e disse que ia nos dar uma sova. Enquanto procurava – ou fingia
procurar, agora nem sei mais – um pedaço de pau, despencamos eu e Vitório
árvore abaixo. E nunca corremos tanto em nossa vida. Creio hoje, passados
tantos anos, que só queria nos dar um susto o homem dos porcos, porque,
primeiro, cidade pequena, todos se conheciam, e ele sabia bem quem éramos;
segundo, o danado era casado com uma das minhas primas! E então, era só mesmo a
vontade de nos pregar uma peça. Já que as jabuticabas daquelas árvores quase
ninguém se aproveitava delas. Só os passarinhos. E nós, eu e Vitório, mais
gulosos que os pássaros.
Tudo isso são memórias.
Memórias longínquas. Vivo hoje em São Paulo, onde não há quase nenhuma
possibilidade de trepar a uma jabuticabeira, para gozar do prazer supremo que é
chupar jabuticabas colhidas diretamente da árvore. Tenho em meu quintal um pé,
mas as jabuticabeiras são árvores lentas, que requerem várias condições – que não
existem, aqui – para que cresçam e frutifiquem. Também comprei uma muda de
enxertia, dessas que frutificam rápido, e plantei-a num vaso. Num vaso! Dá
alguns frutos, de vez em quando, que disputo com os sabiás e bem-te-vis
marotos, aves de cidade grande, que não perdem a oportunidade de saciar – como eu
– sua vontade de um fruto tão delicioso como a pretinha safada chamada
jabuticaba, colhida ou chupada diretamente da árvore, mesmo num quintal cercado
de muros da cidade grande.
1.6.2016