(Symphony Painting by Valerie Vescovi)
vida uma sinfonia que nasce ao solo de um oboé
grito estridente a chamar os finos flautins
afinada a orquestra entram violinos e violoncelos
tímpanos anunciam movimentos trágicos
violinos e violoncelos abraçam trompas
trompetes e todas as madeiras se encapelam
tudo freme em frêmitos e frenesis
longo o andante em dó maior e dores maiores
para enfim calarem-se todos os instrumentos
para o solo encantado da harpa num adagietto
o maestro descansa a batuta e vira-se
para a plateia vazia que responde com silêncio
à sinfonia justa de um tempo que passou
e eu confesso que não compreendo
estranhos os tempos de banhos e leites e tantos cuidados
a vida sem nenhum outro sentido que só o viver
o olhar atento a tudo a tudo absorvendo
bicho que chora que ri que esperneia que anda de gatinhas
o oboé silencia aos poucos para as primeiras palavras
e eu confesso que não compreendo
janelas se abrem para um infinito que cabe numa flor
num cão vadio pela rua num carro que buzina e não freia
a vida começa a ter contornos de prazer e dor
o vento que assobia aos ouvidos são os finos flautins
do lento amanhecer de estações que se sucedem
e eu confesso que não compreendo
o tempo enfim se conta ao som de violinos e violoncelos
sensações e espantos emoções e desilusões o outro
os outros a campina se abre em caminhos e obstáculos
sente-se o vento mas não se acomoda a ele e prossegue
tempo lento que passa numa rajada e fulge em branca luz
e eu confesso que não compreendo
a tragicidade do espanto se instala e o mundo é largo
não se luta tanto quanto se devia lutar e o mundo é largo
não se ama tanto quanto se devia amar e o mundo é largo
o tempo traz as trompas da felicidade que se compra
ali na esquina está a sombra que nos perseguirá
mais adiante o desejo que não se saciará jamais
homens e mulheres enlaçam-se em ritos de passagem
campinas antes floridas ao som dos violoncelos
estiolam-se e renascem mais adiante em flores
que também se estiolam ao sol ou até mesmo aos ventos
cada passo abre um caminho e o mundo é muito largo
constroem-se mistérios e destroem-se as pontes
vagam vazios os vagões vermelhos aos ventos vivos
os caminhos se cruzam e descruzam como centopeias
olham-se para olhos que não mais olham estampado o medo
cultivam-se rancores e amores e esperanças e o mundo é largo
vai comendo cada broto da árvore que se plantou há muitos anos
para um dia quem sabe construir o arco do violino e a palheta
de todas as cores de um arco-íris que devia ter rompido o céu
depois de tantas tempestades e que se despedaçou no deserto
cacos de vida que não se juntam mais e o mundo é largo
e eu confesso que não compreendo
lento o passo ao som do adagio de uma harpa que marca
o compasso em escala descendente para um dó menor
a dor maior dos olhos baços e do caminhar angustiado
contando o compasso a cada passo a cada laço
de que pendem das árvores do caminho as sombras
que marcaram a areia e deixaram o rastro para ninguém
e eu confesso sim confesso que nunca compreendi
que não compreendo ainda e que nunca vou compreender
30.6.2017