28 de fev. de 2022

lavras

 






lavras – cidade cristã

uma torre de igreja

que ilumina a manhã



embora eu seja

tão descrente

quanto um dormente

da linha do trem

subo contente

por tuas ladeiras

que me vêm

à memória

de uma terra

quase sem história



meus pés descalços

que pelas tuas ruas tortas tropeçam

sabem todos os percalços

que por ti se expressam

no tempo que passa

pelas tristes memórias de alguém

que chora um choro que se enlaça

às águas de um tempo de outrora



o menino que foi embora

todos os dias ainda chora

o fato de ter saído

o fato de ter partido

e agora a lágrima que arde

no seu rosto

rola de desgosto

por saber que é muito tarde

para lamentar o que já está posto



22.9.2021

(Ilustração: Lavras / MG: foto aérea de 1968; 
autoria não identificada)



24 de fev. de 2022

lamento dos mortos

 





abre a janela e deixa entrar

o vento

os insetos

os lamentos dos mortos



- não, não ouvirás na verdade

nenhum grito ou choro ou lamento vindos dos túmulos profundos

ou das covas rasas

- só ouvirás o silêncio dos grilos mortos e das cigarras enterradas

- só ouvirás o silêncio das asas dos urubus

nos altos círculos azuis recortados na penumbra dos cemitérios



os lamentos dos mortos não estão no vento

os lamentos dos mortos só trazem os insetos

que buscam a luz do teu quarto



os lamentos dos mortos estão tão mortos e calados

quanto estão mortos e calados os sentimentos daqueles que os enterraram

porque há só um lamento que se ouve

surdamente

pelos becos sem saída

através das máscaras e dos lenços sujos

(e que pode ser confundido com o lamento dos mortos

mas que perpassa pelos olhos fundos dos que realmente choram seus mortos)

que é o do silêncio dos que não acreditaram que eles morreriam



29.10.2021

(Ilusstração: Hieronymus Bosch)

21 de fev. de 2022

lado oculto

 





como a lua ela tem um lado oculto

sombrio mundo sem brilho do sol

vagamente emulado em sonhos

proibido fruto nunca colhido

sombreado assombro onde nascem

e também morrem

todos os passos de loucos fantasmas



sem mares revoltos nem ventos ferozes

talvez apenas a caverna

do tesouro de piratas inábeis

joia inalcançável aos olhos de fogo

impensável e obscura esperança

que depende apenas de um espasmo de paixão

esse seu lado escuro de lua branca



21.8.2020

(Ilustração: Boris Vallejo)

18 de fev. de 2022

inúteis lamentações





relembro sem saudade meus tempos de criança

agora que encaro os dias sem mais esperança

porque no tempo de eu menino

talvez encontre mais sabedoria do que agora

quando o caminho percorrido perfaz

mais estrada que o caminho a percorrer



no tempo de outrora

agora relembrado

tinha o passo lépido

tinha do vento o compasso

para o caminho o olhar alongado

no tempo dos olhos cansados

já o passo

encontra sempre o laço

para o tropeço

e o horizonte estreito

é às vezes apenas o leito

onde se remoem dias lentos de cansaço



o menino estúpido e fútil de outrora

conversa agora

como conselheiro de desencantos mal digeridos

mas os dois se abraçam na mediocridade

de uma vida sem heroísmos

queria ter havido no menino mais coragem e mais vontade

quero ter no velho mais ardor e menos dignidade



e os dois – assim elanguescidos e um ao outro grudados

vão desatando como o vento de outono desfolha as árvores

de seus rosários os nós das – agora - inúteis lamentações



19.4.2021

(Ilustração: Izzet Ziya - jovem no estúdio)



15 de fev. de 2022

inexorável





quando o manacá floresce

eu sei que estou vivo

e tenho dezesseis anos

num tempo de mudanças

dentro de mim



caminhava todos os dias

pelas ruas de pedra e terra

rumo ao colégio

nas manhãs de todas as estações



descobria poetas nos livros

e esquecia a geometria nas provas

seguia o caminho das estrelas

nas noites de lua nova



era apenas eu e meus sonhos

depositados no anseio do futuro

e hoje – quando o futuro já passou –

a flor do manacá muda as cores da vida

e sou apenas eu e meu passado



16.10.2020

(Ilustração: Tarsila do Amaral - manacá)



12 de fev. de 2022

inércia

 



não importa se a inércia do corpo

substantiva a inércia da morte

ou se a inércia do pensamento

verbaliza a inércia do corpo

apenas o que me adjetiva

é essa não vontade de movimento



uma nuvem sem vento no cume da montanha

adverbiando a pedra suspensa sobre o mar



dentro de mim o vácuo de espaços etéreos

veias vazias de volições pronominais

e o desejo escapando pelos labirintos

do rio não represado dos canais das conjunções

e a sensação de amores e humores que não mais virão



agora os corpos para sempre um hiato

subjugados no mesmo leito de águas mortas



não há mais vida sem o ardor

do sangue latejando para o gozo final



22.12.2021


(Ilustração: Lucian Freud:Berlim, 8.12.1922 - Londres, 20.7.2011)


9 de fev. de 2022

indígena

 




sou xavante

sou guarani

lanço o meu grito de bem-te-vi

pelas matas e pelos rios

quero ser livre em meu sossego

de rir o riso dos curumins

plantar pelos caminhos os ossos frios

de ancestrais que dançaram

desde a aurora do tempo

ao som do bater do coração

nos troncos da floresta

sou xavante

sou guarani

sou todos os povos de pindorama

sou todos os povos do brasil

não quero a guerra civil

ou a flecha no coração do pássaro

desejo apenas o respeito à vida

que um dia o bandeirante assassinou

os ventos que cantam no alto das árvores

sejam apenas o silvo dos rituais

não o silvo das balas dos grileiros

nem o som do machado

dos estúpidos madeireiros

não quero rezas de outros povos

deixem tupã nos governar

sou vento e brisa desses campos

sou dono dessas matas

sou dono dessas montanhas

sou dono de mim e de todos os curumins

não tenho a força da fumaça das chaminés

tenho apenas minha nudez

e o que resta de meu braço forte

para lutar contra a morte

que contra mim decretaram

aqueles que naquele maldito dia

a esperança me tiraram





23.5.2020

19.10.2020

(Ilustração: foto da internet, sem indicação de autoria)


6 de fev. de 2022

incongruências

 





as asas com que tentei voar

derreteram ao primeiro raio de sol

ícaro sem porto despenquei nos abrolhos

desci aos infernos da maldição



foram-se para sempre os ventos que podiam me elevar

sou agora o fantasma do fantasma de um pássaro

a rastejar pelos miasmas de minhas incongruências



no espelho de meus desejos vejo apenas o fim de um caminho

de pedras e espinhos construído

no poço profundo de minhas incertezas e de minhas inverdades

jaz em coma o meu coração ferido




26.11.2021

(Ilustração: Jacob Peter Gowy - The Fall of Icarus)

3 de fev. de 2022

ilusão

 






não sei onde mora

este desejo



sei que ele aflora

num doce beijo

ou num simples olhar



mistura-se ao sentimento

de que é bom e vai durar

mas traz apenas sofrimento



talvez seja ele a prova

de que não há paz na paixão

assim como na lua nova

uiva para si mesmo o cão





1.12.2020

(Ilustração: Pablo Picasso - Le Baiser)