Memória. Circula em meu cérebro. Líquida. Memória é água. Em Joyce, rio em cachoeira. Para Ulisses, vaso troiano de puro vinho. Em Proust, oceano. Para mim, sumo de jabuticaba escorrendo no peito, como chuva de verão enchendo o lago. Lago seco, depois, na estiagem desses dias sem futuro. Só o buraco. Água em sua forma mais profunda de ausência. Buracos, muitos buracos em meu cérebro. Que a chuva, temporona e fértil, cai, enche, alimenta em sonho, seca e frustra. Ou faz sonhar. Eu-menino. Muito menino. Tanto que já não há no espelho do lago o reconhecimento daquele olho, daquele nariz que escorre. O outro era V., mesma idade, crescidos juntos na molecagem, no livre trânsito entre o riacho e o quintal. Cidade pequena. Interior. Mineiras, as montanhas ao longe, a voçoroca além da linha do trem. Mineiro o jeito, o quintal: imenso, com abacateiro, mangueiras, jabuticabeiras, bananeiras, até campinho de futebol, perto do ora-pro-nobis com seus espinhos, trepado na cerca-viva de mandacarus. Espinhos nos pés e nas bolas de meia. E jabuticabeiras. Ah! as jabuticabeiras. Havia uma que, de tão grande e velha, servia de brincadeiras de tarzan, com seus galhos fortes e longos. Era dezembro, quase janeiro, e as jabuticabeiras explodiam em frutos negros e saborosos. Mas... o olho grande. Olho maior que a barriga, dizia minha mãe. Quintal vizinho. Também ali, jabuticabeiras: imensas, todas vestidas de negro. Mais belas? Mais saborosas? Havia um homem que tomava conta do chiqueiro, bem ali, perto delas. Vinha aí pelas seis da tarde. Sabíamos. Era cedo, ainda. Pular a cerca de arame farpado, galgar a árvore e empoleirar nos galhos mais altos, questão de minutos, para as pernas finas e ágeis dos dois amigos. Lá em cima, nos refestelávamos. Jabuticabas: maiores e mais doces, nunca mais, pensávamos, entre uma e outra explosão na boca, sumo escorrendo no peito. E as conversas de menino. Muitas, variadas e empolgantes. O jogo de ontem no campinho, a lição da escola, a menina mais bonita da sala, as brigas no recreio. Tempo escorre como sumo bom de jabuticaba. E então olhamos. E mudos ficamos: lá embaixo, o velho da chácara, latas de lavagem nos ombros, os porcos à espera, já assanhados pelo cheiro da comida. E então, o silêncio. O mundo paradinho, paradinho. Engoli o último caroço e mastiguei a última casca. Fazer o quê? Mudos estávamos, estáticos ficamos. Será? Viu, não viu. Está calmo, o velho da chácara. Despeja a lavagem nauseante nos cochos, limpa as fezes antigas, anda pra lá e pra cá, mais lépido do que esperávamos de um velho. Não nos viu! Esperamos. Uma eternidade. Nem olhar um para outro ousávamos, para não fazer barulho. E então, de repente, a explosão: seus filhos da puta, vou dar uma coça em cada um. E no ato de juntar palavras à ação, parte em busca de um pedaço de pau. Lá de cima, senti que a árvore encolhia de repente. Eu e V., gatos, chuvas de verão, raios, ventos, moleques medrosos apenas, num átimo, nos esborrachamos no chão, levantamos, pulamos a cerca de arame farpado, subimos o longo quintal, passamos por minha mãe que costurava na sala, ganhamos a rua. E a tarde ficou longa, esticada, riacho parado, sumo engasgado, jabuticaba amarrando na língua... para perambular pela cidade, até o anoitecer. E a água da memória ficou pouca, muito pouca, para lembrar se o velho reclamou para nossas mães, se levamos ou não a sova que nos esperava...
10.3.2005
(Ilustração: Anita Malfati - pé de jabuticaba)
(Você pode ouvir esse conto, na voz do autor, no seguinte endereço de podcast: