30 de jun. de 2023

teu sonho

 





paisagens surrealistas

sem as cores de salvador dalí

são a estrada de duas pistas

por onde caminhas como se estivesses

dans les souterrains de paris

e tudo quanto sonhas em vão

pelo espaço irão

como pombas bêbadas dançando ao som

de melodias de satie

e tudo quanto seja futuro só se tornará bom

se no espasmo de cortes de anjos demoníacos

o teu sonho seja apenas as penas

das asas do deus caído de teus cultos dionisíacos




2.11.2021

(Ilustração: Salvador Dalí)

27 de jun. de 2023

teu cheiro em mim

 




quero o teu cheiro

na minha língua grudado

quero o teu beijo

na minha pele guardado

nossos suspiros nas nuvens pousados

nossos orgasmos nos leitos perdidos

assim sejam os encontros marcados

assim sejam os abraços ardidos

e no meu cheiro o teu sabor

e no teu sabor o meu suplício

para com todo o tesão que há no mundo

deixar em ti um verso meu

assim como deixas em mim um cheiro teu




22.6.2021

(Ilustração: Hermann Fenner Behmer)

24 de jun. de 2023

terra devastada

 



nos vales das lavras das montanhas mineiras

saem das pedras de grutas profundas o ouro e o minério de ferro

sangra a terra lavrada em dólares

dia e noite noite e dia pelas esteiras

que ligam as minas de minas às gargantas profundas

dos banqueiros de wall street



o ouro que brilha nos dentes de tio sam

vira o aço dos canhões de presidentes insanos

do poderoso irmão do norte

para espalhar por terras e mares

a dor

a pobreza

a morte



os vales mineiros de lavras abertas

que eram antes montanhas azuis

agora abrigam miasmas e fantasmas

de braços negros e olhos vazados



sob os pedregulhos das estradas vicinais

os passos trêfegos de históricos traidores e entreguistas

escrevem com sangue as palavras do poeta

minas não há mais



4.2.2022

(Ilustração: Fernando Botero)

21 de jun. de 2023

tentativa da poesia

 



na cadeira ao sopé da janela

os meus olhos desbravam paisagens

de nevasca e campinas desertas

sob as árvores mortas os pássaros

enrijecem as penas e morrem

tudo morre ao redor dos meus olhos

nesses campos gelados e mortos

só meus olhos que buscam a vida

só meus olhos que lutam por vida

solitário o poeta não sonha

quase morto na estranha paisagem

nesse inverno em que a vida declina

para o passo final da jornada

só lamentos das almas penadas

são ouvidos das sombras das árvores

a chamar para os últimos versos

o poeta ao sopé da janela



corta a cena – possível leitor

nada disso é verdade e o poeta

é visão de meus olhos cansados

a ficção para abrir a cortina

dos sentidos talvez embotados

pelo tempo de estrada e de vida



não tenho nenhum compromisso com versos marcados

não viajei para nenhum país estrangeiro coberto de neve

apenas escrevi algo bem maluco

para chamar sua atenção para meus versos tortos

querendo apenas lhe dizer – prezado possível leitor –

que minto tanto quanto escrevo e escrevo tanto quanto minto

porque mentir faz da arte da poesia sua essência

ao escandir de dentro de mim verdades poéticas

e esconder meus sentimentos mais profundos

em metáforas de sabores e de cores que entreteçam

todos os meus anseios e todos meus receios

medos abissais em que navego e naufrago

quando faço de minha poesia uma espécie

de nau renascida de insensatos pensamentos



então que me perdoem os poetas todos

que se confessaram ao mundo com seus versos derramados

e também que me perdoem os poetas todos

que se voltaram para as aventuras humanas e desumanas

na busca de heróis impossíveis e deuses prováveis

que me perdoem todos quando me confesso

que sou de suas ricas e estranhas tradições

apenas mais um aedo triste a tentar a lira

sabendo que as musas há muito deixaram a terra

e delas só restou a tentativa sempre frustrada

de poetas como eu a cantar canções mil vezes repetidas

cobertas de novo com um pouco mais de tinta ou de cal




25.3.2023

(Ilustração: escultura de Antonio Frilli - sweet dreams 
- nude sleeping in a hammock, ca.1890)









18 de jun. de 2023

tempos de amor e chumbo

 






no aparelho a terra treme

os ventres pipocam acima do medo

o amor sobre as tábuas geme

no ar o cheiro de pólvora e segredo

toca o dedo trêmulo a campainha

mais um companheiro baleado

mais um companheiro desgraçado

sempre chega mais um e se aninha

o amor foge pelas frestas da porta

na espera e na angústia de mais um dia

a vida lá fora parece morta

a vida aqui dentro transpira melancolia

não há revolta nos olhos das mulheres

não há angústia no peito dos homens

apenas o mover lento dos talheres

e tu és a luta e apenas tu me consomes

desde que trema a terra

cada vez que nossas coxas ficam vermelhas

na paixão que na audácia se consome sob as telhas

há o tesão e o ódio para manter a paixão acesa

na luta pelo nosso ideal

porque mais que o amor e o ato que tremem a terra

mais que lutar sempre a mesma guerra

o sonho de liberdade permanece imortal




6.6.2021

(Ilustração: Edvard Munch -Agonia)

15 de jun. de 2023

tempo que rasteja

 





dizem que o tempo voa

que o tempo passa e a todos atordoa

mas o que rasteja aos passos lentos

não é senão esse mesmo maldito tempo

quando ando por aí sem pressa

e ouço sempre seus lamentos

a pedir-me que ande mais depressa

que ele – o tempo – precisa voar

e não consegue me acompanhar

nesse meu trôpego andar

e eu não sei que bobagem é essa

que o tempo vem a lamentar

pois quando jovem quantas vezes

lhe pedi que parasse

que não voasse

e ele nunca me atendeu

sempre se manteve altivo e duro

e agora que o tempo futuro

ficou mais pequeno e meu passo mais fraco

que no tempo passado

ele – esse tempo que sempre voou – quer dar pitaco

no meu passo compassado

no meu passo arrastado

com ele – esse maldito tempo – no meu encalço

e diante dele – o tempo – que um dia voava

e a tudo atropelava

antegozo o fato de tê-lo bem preso no laço

e no compasso

do meu agora mais lento passo



29.10.2022

(Ilustração: Andrew Wyeth - Garret room,1962)



Você pode ouvir esse poema, na voz do autor, neste link de podcast:

12 de jun. de 2023

tempo – mais um poema

 




jovens – o tempo que se gasta com qualquer atividade

é tempo que se ganha para viver



velhos – o tempo que se gasta com qualquer atividade

é tempo que se perde para morrer



e no entanto sempre o mesmo é o tempo

impoluto guerreiro grego

apolíneo e indiferente no cinzel de michelangelo

artífice de nossas melhores qualidades

e de nossos piores defeitos

deus absoluto de nossos caminhos

aqueronte que no barco de nossa vida

não nos cobra em moeda o transporte

nem nos permite a orfeica opção do retorno




28.4.2023

Ilustração: Gustave Doré - Caronte)





9 de jun. de 2023

tempero do tempo

 





quando veio do centro da terra

o chamado do veio de ouro

você não ouviu

você não escutou



quando o veio da terra sopesou

sobre seus ombros o peso do encosto

você resistiu

você não sofreu



quando veio do centro da terra

o veio d’água brotando fervente

você não gritou

você não pulou



quando do auge do tempo

bateu mais forte o vento

você não voou

você não suspirou



e agora que os passos da boiada

levantaram poeira na estrada

espero que você enfrente

espero que você tente

pelo menos uma vez na vida

sentir na pele a mordida

da cobra coral

e das brenhas do seu ser infernal

haja afinal o tempero do sal

 



22.9.2021


(Ilustração: escultura de Michael Alfano - liquid sunshine, 2023)

 

6 de jun. de 2023

temor

 





o incognoscível nos atemoriza

humanos perdidos na selva escura

cada passo deve ter medida precisa

do que nos reserva o futuro



da matéria qual o tamanho da unidade mínima?

da unidade de tempo qual o instante mínimo?

e o espaço em quantas unidades mínimas se divide?



talvez sejamos nós o mínimo dos mínimos

de todas as unidades de que se forma o infinito

no meio do turbilhão de galáxias e mundos perdidos

o sonho de cada noite ou a esperança de cada dia

sejam talvez o temor que nos alimenta

ser poeta ou cientista não nos fazem mais sábios

se não sabemos nem de amebas e vírus

nem como se formam no espaço os buracos negros

porque buraco negro é a profunda necessidade

de olharmos para o fundo de nossa mente

sem o pestanejo da explosão primordial

e percebermos que o universo aqui dentro

é tão infinito quanto o que está lá fora

e que só mesmo nos resta não o medo

da morte - mas o temor da vida



14.5.2021

(Ilustração: Cândido Portinari - as moças de Arcozelo, 1940)

4 de jun. de 2023

O VELHO DA CHÁCARA

 



Memória. Circula em meu cérebro. Líquida. Memória é água. Em Joyce, rio em cachoeira. Para Ulisses, vaso troiano de puro vinho. Em Proust, oceano. Para mim, sumo de jabuticaba escorrendo no peito, como chuva de verão enchendo o lago. Lago seco, depois, na estiagem desses dias sem futuro. Só o buraco. Água em sua forma mais profunda de ausência. Buracos, muitos buracos em meu cérebro. Que a chuva, temporona e fértil, cai, enche, alimenta em sonho, seca e frustra. Ou faz sonhar. Eu-menino. Muito menino. Tanto que já não há no espelho do lago o reconhecimento daquele olho, daquele nariz que escorre. O outro era V., mesma idade, crescidos juntos na molecagem, no livre trânsito entre o riacho e o quintal. Cidade pequena. Interior. Mineiras, as montanhas ao longe, a voçoroca além da linha do trem. Mineiro o jeito, o quintal: imenso, com abacateiro, mangueiras, jabuticabeiras, bananeiras, até campinho de futebol, perto do ora-pro-nobis com seus espinhos, trepado na cerca-viva de mandacarus. Espinhos nos pés e nas bolas de meia. E jabuticabeiras. Ah! as jabuticabeiras. Havia uma que, de tão grande e velha, servia de brincadeiras de tarzan, com seus galhos fortes e longos. Era dezembro, quase janeiro, e as jabuticabeiras explodiam em frutos negros e saborosos. Mas... o olho grande. Olho maior que a barriga, dizia minha mãe. Quintal vizinho. Também ali, jabuticabeiras: imensas, todas vestidas de negro. Mais belas? Mais saborosas? Havia um homem que tomava conta do chiqueiro, bem ali, perto delas. Vinha aí pelas seis da tarde. Sabíamos. Era cedo, ainda. Pular a cerca de arame farpado, galgar a árvore e empoleirar nos galhos mais altos, questão de minutos, para as pernas finas e ágeis dos dois amigos. Lá em cima, nos refestelávamos. Jabuticabas: maiores e mais doces, nunca mais, pensávamos, entre uma e outra explosão na boca, sumo escorrendo no peito. E as conversas de menino. Muitas, variadas e empolgantes. O jogo de ontem no campinho, a lição da escola, a menina mais bonita da sala, as brigas no recreio. Tempo escorre como sumo bom de jabuticaba. E então olhamos. E mudos ficamos: lá embaixo, o velho da chácara, latas de lavagem nos ombros, os porcos à espera, já assanhados pelo cheiro da comida. E então, o silêncio. O mundo paradinho, paradinho. Engoli o último caroço e mastiguei a última casca. Fazer o quê? Mudos estávamos, estáticos ficamos. Será? Viu, não viu. Está calmo, o velho da chácara. Despeja a lavagem nauseante nos cochos, limpa as fezes antigas, anda pra lá e pra cá, mais lépido do que esperávamos de um velho. Não nos viu! Esperamos. Uma eternidade. Nem olhar um para outro ousávamos, para não fazer barulho. E então, de repente, a explosão: seus filhos da puta, vou dar uma coça em cada um. E no ato de juntar palavras à ação, parte em busca de um pedaço de pau. Lá de cima, senti que a árvore encolhia de repente. Eu e V., gatos, chuvas de verão, raios, ventos, moleques medrosos apenas, num átimo, nos esborrachamos no chão, levantamos, pulamos a cerca de arame farpado, subimos o longo quintal, passamos por minha mãe que costurava na sala, ganhamos a rua. E a tarde ficou longa, esticada, riacho parado, sumo engasgado, jabuticaba amarrando na língua... para perambular pela cidade, até o anoitecer. E a água da memória ficou pouca, muito pouca, para lembrar se o velho reclamou para nossas mães, se levamos ou não a sova que nos esperava...






10.3.2005

(Ilustração: Anita Malfati - pé de jabuticaba)



(Você pode ouvir esse conto, na voz do autor, no seguinte endereço de podcast:

3 de jun. de 2023

teia

 






o passado é o que queremos

que ele seja



o futuro é o que sonhamos



o presente – só o presente –

é o imponderável

o tempo imodificável

e a ele estamos presos

– mosca na teia



4.1.2023

(Ilustração: Livia Valente,Equilibrio)