na cadeira ao sopé da janela
os meus olhos desbravam paisagens
de nevasca e campinas desertas
sob as árvores mortas os pássaros
enrijecem as penas e morrem
tudo morre ao redor dos meus olhos
nesses campos gelados e mortos
só meus olhos que buscam a vida
só meus olhos que lutam por vida
solitário o poeta não sonha
quase morto na estranha paisagem
nesse inverno em que a vida declina
para o passo final da jornada
só lamentos das almas penadas
são ouvidos das sombras das árvores
a chamar para os últimos versos
o poeta ao sopé da janela
corta a cena – possível leitor
nada disso é verdade e o poeta
é visão de meus olhos cansados
a ficção para abrir a cortina
dos sentidos talvez embotados
pelo tempo de estrada e de vida
não tenho nenhum compromisso com versos marcados
não viajei para nenhum país estrangeiro coberto de neve
apenas escrevi algo bem maluco
para chamar sua atenção para meus versos tortos
querendo apenas lhe dizer – prezado possível leitor –
que minto tanto quanto escrevo e escrevo tanto quanto minto
porque mentir faz da arte da poesia sua essência
ao escandir de dentro de mim verdades poéticas
e esconder meus sentimentos mais profundos
em metáforas de sabores e de cores que entreteçam
todos os meus anseios e todos meus receios
medos abissais em que navego e naufrago
quando faço de minha poesia uma espécie
de nau renascida de insensatos pensamentos
então que me perdoem os poetas todos
que se confessaram ao mundo com seus versos derramados
e também que me perdoem os poetas todos
que se voltaram para as aventuras humanas e desumanas
na busca de heróis impossíveis e deuses prováveis
que me perdoem todos quando me confesso
que sou de suas ricas e estranhas tradições
apenas mais um aedo triste a tentar a lira
sabendo que as musas há muito deixaram a terra
e delas só restou a tentativa sempre frustrada
de poetas como eu a cantar canções mil vezes repetidas
cobertas de novo com um pouco mais de tinta ou de cal
25.3.2023
(Ilustração: escultura de Antonio Frilli - sweet dreams
- nude sleeping in a hammock, ca.1890)
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