30 de jul. de 2023

OUVINDO CHOPIN





Barbeava-me ao som de Chopin. Lentamente, como deve ser, a afiada navalha herdada de meu pai deslizava sobre minha pele, enquanto olhava no espelho o meu rosto crispado, os meus olhos injetados de sangue. Nem Chopin nem o ato de barbear-me lentamente conseguiam acalmar-me. Tinha, porém, que me barbear, para aliviar a tensão, para tentar dar à ruína de meu rosto uma aparência no mínimo apresentável. Iria, logo depois, ao IML. Árdua tarefa procurar por um corpo que não havia, era tudo muito incerto, era tudo muito estranho. Três dias. Três dias e três noites eu a procurei. Agora, iria ao IML. Meu coração batia desritmado no peito, como as cordas de um piano desafinado, tão desafinado que nem o concerto de Chopin dava jeito. Os pelos de meu rosto iam pouco a pouco sendo arrancados e levados pela água fria da torneira aberta à proporção que subia minha angústia em pensar que... Ouço um barulho de chave na porta, fecho a torneira e uns dois segundos de profundo silêncio caem sobre mim. Espero. A porta se abre e se fecha. A chave gira e tranca. A mão treme, a navalha deixa um risco de sangue no meu rosto. Os passos leves sobem agora a escada, lentamente, lentamente, lentamente. O perfume entra antes da dona, o perfume forte e doce que ela teima em usar, apesar de minha rinite. Não tenho tempo de me virar e ela já está encostada em mim, o olho enorme refletido no espelho, misturado ao meu espanto. "Oi, querido, já de pé tão cedo?" Uma flauta que se imiscui ao som do piano. Antes de me virar, estendo a mão direita e desligo o rádio. Chopin acaba de descer o ralo com todo o meu ódio. Não. Meu ódio borbulha e retorna. No tempo entre o momento em que minha mão desliga o som do rádio e meu corpo faz um giro de cento e oitenta graus para se colocar de frente para ela, eu lembro os últimos três dias. Acordara de manhã para trabalhar e o leito estava vazio. Fui ao banheiro, tomei banho, desci. Um pesado silêncio acompanhou meus passos escada abaixo. A casa, vazia. Chamei. "Helena". Nada. Gritei. "Helena!". Nada. Vasculhei cada vão e desvão da casa. Nada. Liguei para os amigos. Nada. Um bilhete, nada, nada, nada. Sentei e esperei. Lá pelas duas da tarde, o telefone: "Pedro, está tudo bem?" "Quem... quem é?" "Orlando, aqui do escritório... você não apareceu para a reunião... Algum problema?" "Não... não... só não estou me sentindo bem... não vou trabalhar hoje... avisa aí o pessoal... desculpe..." Desliguei. O sol traçou um longo arco desde o sofá até o piano e desapareceu. Fechei as cortinas pesadas. Encolhi-me de novo no sofá. Agora, as costas doíam. A alma doía. A escuridão doía. Abri a cortina da sala e meus olhos arderam com a luz do poste, luz branca, forte, fogo em minha cabeça. Voltei para o sofá e só acordei com o sol batendo em meu rosto. Vinte e quatro horas haviam se passado desde que Helena sumira. Liguei para a polícia. Depois de várias tentativas, depois de me mandarem de um número para outro, consegui que me ouvissem. "Comunicar um desaparecimento". "Quanto tempo?" "Vinte e quatro horas". "Desculpe, mas temos que aguardar pelo menos setenta e duas horas, para tomarmos providências..." "Puta que pariu, é minha mulher!" "Desculpe, senhor, nada podemos fazer." Bati o telefone e voltei para o sofá. E agora? Depois de um tempo, resolvi ligar de novo, agora para os amigos, pedir ajuda, desabafar. Prestativos, alguns; indiferentes, outros, mas acabei recebendo alguma ajuda. Prontificaram-se a procurar em hospitais e delegacias de polícia. E assim passou o segundo dia. À noite, alguns amigos apareceram. Tinham revirado a cidade. Nada. Sugeriram que eu tentasse dormir. De manhã, se nada acontecesse, um deles prometeu me levar ao IML, Instituto Médico Legal. Olhei-o com ódio, ele não percebeu. Ainda bem. Não tinha culpa. Queria ajudar. Tentei comer. Não consegui. Tentei conversar com um ou outro que ainda ficara para me consolar. Não consegui. Sozinho, acomodei-me de novo no sofá, ao lado do telefone, ouvindo o eco da casa vazia. E acompanhei o lento esmaecer da luz do poste com a chegada da manhã. E então, alguém ligou, dizendo que eu me arrumasse e me vestisse, que passaria para me pegar dentro de uma hora. Foi quando subi para me lavar, barbear e liguei o rádio do banheiro, que estava tocando um concerto de Chopin. E agora ela estava ali, na minha frente, os dentes brancos entre os lábios vermelhos, o olho azul mais brilhante ainda que da última vez que os fitara, o rosto levemente maquiado e fresco, como o de alguém que acabara de acordar, feliz da vida, lépida, livre e linda. Aquele rosto tão perto do meu. Aquele colo branco ao alcance de minha mão. Queria beijá-la, queria apertar aquele pescoço e fazê-la gemer de prazer, como sempre gemia, em nossos rompantes de amor, adorava que lhe apertasse o pescoço antes do orgasmo, e gozávamos juntos, entre gritos e gemidos, e aquele longo e branco e delicioso pescoço a oferecer-me de novo o paraíso, o paraíso que trilhávamos juntos, loucos, cães vadios em ruas desertas, em turbilhões de sentimentos e mistérios revelados, epifanias de paixão, nós, fundidos numa via láctea de prazeres, e então eu só me lembro de haver acordado sei lá quanto tempo depois, com o barulho da porta lá embaixo sendo arrombada, e ela estava ali, o pescoço aberto, o sangue coalhado e espalhado em poças por todo o banheiro, tudo, tudo vermelho e eu... só me lembro que me barbeava ao som de Chopin.





31.3.2013

(Ilustração: Piet Mondrian - Composition with Dark Colours, 1919)


(Você pode ouvir esse texto, na voz do autor, seguindo este link de podcast:

27 de jul. de 2023

último beijo

 



a noite de fantasmas e tormento

desconsolou meu desespero

e colocou ainda mais tempero

no prato do meu sofrimento



afogo-me num mar de lama

para o abismo que me chama



tudo me traz desejo de morte

não há nada que me conforte



sinto-me totalmente exangue

e tudo quanto agora desejo

é regar com lágrimas de sangue

a flor oculta do teu último beijo




7.6.2021

(Ilustração: Carolus-Duran - Le Baiser, 1868)

24 de jul. de 2023

última taça

 




quando a última sombra vier toldar seus olhos

ofereça-lhe ainda uma taça de vinho

brindarão ambos à vida sem pensar no luto

e abraçados e felizes irão depois pelo caminho

que leva ao absoluto nada ou ao nada absoluto




29.6.2023

(Ilustração: Manuella Le Nechet - les verres de vin)

21 de jul. de 2023

tudo é poesia

 




tudo é poesia

desde o pôr do sol

até o nascer do dia

e segue de novo o poeta à poesia

por todo o dia até o arrebol

- quando se tem alegria



2.11.2021

(Ilustração: Ada Breedveld)

18 de jul. de 2023

tua nudez de longilíneas formas

 



 

ofereces-me tua nudez de longilíneas formas

colho através delas o meu encanto de extremos

na busca de mim mesmo pelas tuas curvas

ao encontro das águas profundas de minha paz não desejada

 

o teu repouso em carne e opróbrio abre meus sentidos para a poesia

és musa de versos que talvez não te mereçam

evoco nas tuas formas os passos perdidos por caminhos penosos de areia e pedra

 

quanto te abres aos meus desejos

o grito da vida ecoa como num quadro de edvard munch

e agoniza em pranto nas asas do pássaro de ontem

quando a flor tesa ainda buscava o céu orvalhada de beijos e espasmos

 

tu eras o pólen no bico do beija-flor

 

oh! como ouso ainda contemplar com meus olhos baços

essa nudez de longilíneas formas que me ofereces?



 

25.12.2021

(Ilustração: Edvard Munch - Hands, 1894

15 de jul. de 2023

tristeza

 



a tristeza que me abala

vem de um lugar tão profundo

que eu não sabia que existia

dentro de mim



esse lugar contém tantas mágoas

e tantas esperanças mortas

que eu não sabia que existiam

dentro de mim



essas mágoas e esperanças mortas

provocam tanta solidão e tantas lágrimas

que eu não sabia que existiam

dentro de mim



concluo portanto que dentro de mim

há tantos sentimentos e lamentos

que me tornam um poço de provas

que me fazem chorar esse espanto

que cresce e floresce sem eu saber

dentro de mim



7.5.2022

(Ilustração: Aleksander Gierymski - Peasant coffin, 1895)

12 de jul. de 2023

trio

 


 um violino lino lino lino

um violoncelo celo celo celo

um piano

e o trio se faz som na minha cabeça

talvez um sonho

talvez um solo

um solo de violino

um solo de violoncelo

um solo de piano

e o silêncio entre minha vida

e a vida de sonho que sonho

talvez assim talvez assim

passado presente futuro

talvez assim o som mais puro

o trio o triângulo e o tríplice arbítrio

de soar o som ao trio

hino e céu pianíssimos

pianíssimos

violino e acorde

que me acorde

violoncelo e o paralelo

longe

responde de onde vem o bonde

para onde vai o bonde

no bonde o piano no trilho no trio

os três a vez a voz do vento o vento o vento

o dia esfria a fria neblina do dia

vi o violino e suas cordas finas finas finas

vi o violoncelo e seus acordes

ouvi o piano pianíssimo

pianíssimo puro acorde de frio

no fim do dia

ouvi e vi o bem-te-vi e a vida

fez enfim

todo o sentido de ser

e viver


 

6.6.2021

(Ilustração: Michel Calvet - trio)

 

 

9 de jul. de 2023

E TUDO NÃO PASSOU DE MAIS UMA VERDADE

 



No dia em que completou trinta e três anos, ganhou uma muda de jabuticabeira. Todos sabiam que ele gostava de frutas. Foi plantá-la no quintal e, ao cavar o buraco, deparou com uma moeda antiga, de ouro. Chamou o filho de treze anos e mostrou-lhe a moeda. Já era quase noite. Não viu no rosto do menino o brilho estranho de seus olhos. Deixou para o dia seguinte a tarefa de plantar a muda da jabuticabeira. Tomou banho, perfumou-se, pe­gou a mulher e saiu com os amigos, para comemorar o aniversário. Quando voltou, já quase amanhecendo o dia seguinte, encontrou a empregada aos prantos. O menino sumira. E o quintal estava todo esburacado. Havia bura­cos, buracos de variados tamanhos, onde antes havia orquídeas, roseiras, dálias e sempre-vivas, um bem cuidado jardim, cultivado com carinho nas horas de folga. Chamou a polícia, vieram os bombeiros, a vizinhança assa­nhou-se, os jornais publicaram, a televisão filmou e os dias se passaram. Nada do menino. Os buracos, constataram os bombeiros, depois de minuciosa perícia, nem eram tão fundos que pudessem fazer desaparecer um menino de treze anos. O tempo passou, os jornalistas esqueceram o fato, a polícia arquivou o caso, a mulher (que nunca se conformou com o ocorrido) foi embora com outro. Ele ficou só. No quintal, num dos buracos, plantara a muda de jabuticabeira e nada mais brotou ou cresceu ali. Quando completou sessenta e seis anos, a jabuticabeira, que nunca frutificara, deu uma grande carga. Chamou alguns poucos amigos que ainda frequentavam sua casa e com eles dividiu o prazer de apanhar e chupar as jabuticabas, grandes e doces como eram as de sua infância. Continuou sozinho e, às vésperas de completar cento e dois anos, já velho e alquebrado, pediu ao enfermeiro que o conduzisse na cadeira de rodas até embaixo da também velha jabuticabeira, que nunca mais havia frutificado. Era um dia quente, muito quente e a sombra da velha árvore acolheu-o como a um amigo. Antes de dar o último suspiro, julgou ver entre os galhos da jabuticabeira o sorriso quase esquecido do filho perdido há tanto tempo. Quando contei essa história a um amigo, ele pensou que eu estivesse mentindo, que eu estivesse zombando dele, mas quando lhe disse que era apenas uma ficção, ele concordou e até me disse que conhecia a casa onde morrera o velho, no antigo bairro onde moravam seus pais.





10.9.97

(Ilustração: Carl Spitzweg - Der Maler im Garten - 1865)

(Você pode ouvir esse conto, na voz do autor, no seguinte link de podcast:
 

6 de jul. de 2023

trepar numa árvore

 


não tem asas o menino

mas é passarinho no galho mais alto

da jabuticabeira

da mangueira

[não do abacateiro que tem galhos frágeis]

olha o mundo lá de cima o menino-colibri

olha o mundo cá de baixo o homem-jabuti

a carapaça dos anos cobriu seus sonhos

e trepar numa árvore

sentir o cheiro do vento

cutucar com o dedo a manga amarela

olhar de perto o azul do infinito

espoucar na boca o sumo da jabuticaba

o menino não voava

só o pensamento flutuava

e a vida corria

a vida escorria

na seiva do verde das folhas

no joelho ralado na rudeza dos galhos

nada disso agora quando pesam as costas

nada disso agora quando pesam os sonhos

[quisera – e quanto pudera – trepar numa árvore]



11.3.2022

(Ilustração: Piet Mondrian - Evening, Red Tree, 1908–10)

3 de jul. de 2023

teus mistérios

 





teus mistérios permanecem mistérios

guardados pelo toque sensível

do sino sagrado que encima a entrada

da tua caverna nas furnas escondida

longe do alcance de piratas perdidos

e náufragos de noites tempestuosas



mesmo que ainda haja tesouros escondidos

no fundo escuro de teus labirintos

cobrem-te os mantos da desesperança



não importa quanto se cruzem bandeiras de navios piratas

nas batalhas que levam a afundamentos intempestivos

acusando-se uns aos outros de esconder em seus porões

os mapas dos caminhos que levam aos teus delírios



estão fechados os teus umbrais até mesmo

para os fantasmas enlouquecidos

pobres miasmas de desejos que outrora cultivaste

porque não há salvação para os espantos e mistérios

quando se aguçam desejos inconfessáveis

de aventuras recém-nascidas e já desesperançadas




2.10.2021

(Harry Holand - torso nu, 2012)