30 de mar. de 2025

noite de lua cheia

 




queria poder ainda contemplar a lua cheia

o luar refletido nos frutos da jabuticabeira

ouvir o cricri dos grilos no meio do mato

o pio longínquo de uma coruja solitária

o pisar macio do lobisomem na grama do jardim

a estática do rádio ligado em ondas curtas

a serenata distante de um cantor desafinado

o ranger insone da cama patente

as badaladas do sino triste da matriz

[talvez o adeus a mais um velho centenário

da para sempre velha cidade adormecida]



e tudo quanto tenho de meu neste momento

são os sonhos que um dia ficarão pela poeira da estrada

numa outra noite de lua cheia perdida no passado



6.12.2024

(Ilustração: Lavras/MG - foto de Rerold Ribeiro)

27 de mar. de 2025

mineirices - 5

 



subir e descer ladeira

andando assim à toa

e sonhando à luz luneira

de manhã café com broa

para o dia de mansinho

rolar bem devagarinho

- eta vidinha mineira!




12.10.2024

(Ilustração: Cora Azêdo - as lavadeiras do Rio São Francisco)

24 de mar. de 2025

meu grito

 



um ponto no infinito

- uma estrela –

recolhe o meu grito

dói-me não tê-la



dói-me o espanto da distância



espero na noite a tua voz

peço clemência aos astros

nesse grito de solidão atroz

quando pulsam na pele os rastros

de beijos e orgasmos

desencantados

pelo sonho tecido nos espasmos

de tempos marcados

pelo estranhamento de nossos desejos



na noite o meu grito

ecoa pelo infinito

em busca de teus beijos





4.10.2023


(Ilustração: Stephi Lee)

21 de mar. de 2025

meu corpo






meu corpo – uma cidade abandonada

nascem famélicos miasmas e fantasmas de meu sangue

navego dentro de mim pelo rio que corre para o nada

barco sem vela e a bordo um comandante exangue

a bradar contra as estrelas todo o seu desespero

sinto o vazio corromper por dentro minha esperança

não há mais em mim qualquer tempero

que possa equilibrar os pesos da balança

sou apenas no rio de águas turvas o morto

que vento e ondas levarão para qualquer porto





12.4.2023

(Ilustração: Édouard Manet: Le Suicidé,  ca.1877)

18 de mar. de 2025

meme absurdo

 




você me diz que a ciência

não pode explicar a existência

- ou não – de deus

então contraponho aos argumentos seus

os meus tortos pensamentos ateus



deus nada tem a ver

com ciência e suas metodologias

tem deus a ver com o crer

- algo como um meme de ideologias -

um meme perdido no tempo da mente humana

de quando a mente humana nem era exatamente humana

um absurdo assim como pensar em asas para a baleia

uma asa que pode ser tão bela quanto insana

pois é preciso que se creia

que – vinda do fundo do mar –

ela precise também voar



olhe – olhemos – o mundo ao redor

nele não há nada que lembre ciência

não há nada feio nem belo nem melhor nem pior

tudo o que existe simplesmente existe

até mesmo tudo aquilo que com certa competência

nós – os humanos – inventamos

e por aí espalhamos

seja aquilo que é transitório ou que ao tempo resiste



então pense comigo por um instante

se à ciência o homem inventou

não pode essa variável inconstante

(porque humana)

explicar ou não o que não criou

- esse meme absurdo que se chama deus -

só pode dizer que é isso mesmo – um meme absurdo –

que surgiu não se sabe quando

uma ideia que foi pouco a pouco aumentando

algo que absolutamente não existe

que não demanda explicação – nem da ciência nem de quaisquer ramos seus

e basta dizer – em nome da ciência - que esse meme só persiste

para desespero de todos os ateus






9.10.2023

(Ilustração: Francesco Hayez - destruction of the temple of Jerusalem)

15 de mar. de 2025

melancolia de verão

 



há dias que não deviam ter amanhecido

quando a mente divaga pela manhã como se fosse noite

quando tudo quanto se quer é o silêncio de uma madrugada fria

enquanto ao redor o verão do aquecimento global

abrasa pensamentos e corações



há dias que trazem no bojo quente do verão a melancolia

de passos perdidos em noites de outrora

quando a vida era apenas o quadrado do paralelepípedo seguinte

e o frio do tempo não enregelava o peito opresso por horizontes dissolvidos

na névoa de manhãs que hoje não existem mais



não se espera da vida que seja ela sempre a manhã de bem-te-vis

não se espera entretanto que haja noite eternas

nem nuvens de tempestade que não se abram em arco-íris

ao final da tarde

– que haja amanheceres de tempos em tempos – um respiro



se não se vislumbra de vez em quando a estrela da manhã

a solidão da noite se transforma em manto de saudade

a travar os passos de novas buscas e de novos caminhos



que se peça à noite que respeite o lento mover do vento

e seja ela – a noite – o tempo do esvaziamento

para que o dia nasça sempre com o renovado ensejo da esperança




10.1.2024

(Ilustração: Berthe Morisot - Jour d'été, 1879


Ouça esse poema na voz do autor, ISAIAS EDSON SIDNEY, num destes canais:

- YouTube:


- podcast do Spotfy:


12 de mar. de 2025

maná




todos arrastam pela vida afora

seus abismos internos

onde cabem dúvidas e descrenças

prazeres desgastados

e pequenos infernos particulares



já eu não arrasto abismos

- vivo dentro deles

nem sempre conformado com suas arestas

que me impedem de subir à superfície



mas os meus abismos não me consomem

eles me alimentam do maná

que escorre como serpentes negras

de suas reentrâncias rugosas

e se enroscam em meus sonhos desfeitos

- a poesia

que às vezes brota

desses meus pobres versos tortos




14.11.2023

(Ilustração: Dorr Bothwell: Print of the Day, 1947)

8 de mar. de 2025

mau humor

 


o olho com que olho

para dentro de mim

tem cores intercorrentes

de espanto e desolação

mas são meus os abismos

apenas minhas as dores todas



o olho com que olho

o mundo que me cerca

tem cores de noites sem lua

e nuances de revolta inaudita

que embaralham o que eu penso

e o que eu penso está chorando

as lágrimas das florestas que ardem

o desprezo dos que afundam o mundo

no ouro dos negócios escusos

o escárnio dos que fazem as guerras

para manter seus domínios

com o sangue de crianças inocentes



não gosto de fazer poemas

quando aflora em mim o mau humor

embora não goste muitas vezes do olho

com que olho para dentro de mim



mas o olho azedo

com que vejo o mundo de fora

faz-me refém dos humores negros

com que vejo cadáveres insepultos

estraçalhados pelas balas insanas

quando vejo a matança que não para

quando vejo a destruição que come cada pedaço

de um mundo que eu julgava pertencer

a meus filhos e netos

e aos filhos e netos de todos os demais seres humanos



olho para a minha geração

e só vejo monstros que não têm filhos e netos

[ou se os têm com eles não se preocupam]

serão todos comidos pela guerra

serão todos devorados pelos estertores do planeta

e o planeta azul se vestirá de negro

para se livrar da raça que tenta destruí-lo

será quente como o sol

será frio como plutão

será de novo a pangeia

será de novo a geleia geral



e depois de muitos e muitos séculos

renascerá como o planeta azul da vida e da beleza

livre enfim

totalmente livre

dos vermes sapientes que um dia

tentaram destruí-lo



não gosto de fazer poemas

quando aflora meu mau humor

mas o olho com que me olho

e com que contemplo os meus abismos

definitivamente

não é o olho com que olho

os humanos que hoje habitam esse belo planeta

[vê-se que o meu mau humor

torna-se mais negro e mau

quando olho os olhos

dos demais homines sapientes]



é esta a minha sina de pretenso poeta

se olho para dentro de mim eu me ponho a lamentar

se olho para fora de mim eu me ponho a chorar





16.11.2023

(Ilustração: Arnold Böcklin (1827-1901) - a ilha dos mortos, quinta versão)


Ouça esse poema na voz do autor, ISAIAS EDSON SIDNEY, num destes endereços:

- no YouTube:



- no podcast do Spotfy:

6 de mar. de 2025

machadiana

 





alieno-me em mim mesmo

ao reler Machado de Assis

e saio pelas ruas a esmo

tentando entender esses brasis



esses brasis que do Rio de Janeiro

sonha o escritor em cada linha



– não há ali o mulato inzoneiro

nem os indígenas que comeram o Sardinha

mas uma sociedade complicada

que descia dos morros para as ruas

[– às vezes irrequieta – às vezes calada]

a viver as desventuras suas

num cadinho de gentes e de cores

que se constroem como nação

uma nova nação de bravos

agora já sem escravos

mas ainda com muitos senhores

a borrar o seu brasão

com as asas de um ou outro urubu



mas Machado só tem mesmo dissabores

ao mostrar a si mesmo pelos olhos de Capitu



25.11.2024

(Ilustração: foto da internet sem indicação de autoria)

3 de mar. de 2025

jogo do amor

 




na vida joga-se o jogo

quando o jogo tem regras

mas no amor o fogo

torna a partida às cegas



e perguntam um ao outro os amantes

de mim o que esperas?



se ficamos um do outro distantes

viramos ambos feras

que - feridas pela saudade -

não sabem o que fazer

e perdem toda a sagacidade



se estamos um ao outro ligados

como gêmeos siameses

brigamos como dois soldados

e pedimos a todos os deuses

que morra um para o outro viver



nesse jogo de gato e rato

não há regras nem consciência

jogamos no lixo a paciência

e rasgamos qualquer contrato



não tem portanto regras

do amor esse desvairado jogo

quando tudo pega fogo

loucos ficamos e jogamos às cegas



e quando um do outro pensa ganhar

é porque já não há jogo nenhum para jogar





1.12.2024


(Ilustração: William-Adolphe Bouguereau (1825–1905) - Fight, 1864)