o olho com que olho
para dentro de mim
tem cores intercorrentes
de espanto e desolação
mas são meus os abismos
apenas minhas as dores todas
o olho com que olho
o mundo que me cerca
tem cores de noites sem lua
e nuances de revolta inaudita
que embaralham o que eu penso
e o que eu penso está chorando
as lágrimas das florestas que ardem
o desprezo dos que afundam o mundo
no ouro dos negócios escusos
o escárnio dos que fazem as guerras
para manter seus domínios
com o sangue de crianças inocentes
não gosto de fazer poemas
quando aflora em mim o mau humor
embora não goste muitas vezes do olho
com que olho para dentro de mim
mas o olho azedo
com que vejo o mundo de fora
faz-me refém dos humores negros
com que vejo cadáveres insepultos
estraçalhados pelas balas insanas
quando vejo a matança que não para
quando vejo a destruição que come cada pedaço
de um mundo que eu julgava pertencer
a meus filhos e netos
e aos filhos e netos de todos os demais seres humanos
olho para a minha geração
e só vejo monstros que não têm filhos e netos
[ou se os têm com eles não se preocupam]
serão todos comidos pela guerra
serão todos devorados pelos estertores do planeta
e o planeta azul se vestirá de negro
para se livrar da raça que tenta destruí-lo
será quente como o sol
será frio como plutão
será de novo a pangeia
será de novo a geleia geral
e depois de muitos e muitos séculos
renascerá como o planeta azul da vida e da beleza
livre enfim
totalmente livre
dos vermes sapientes que um dia
tentaram destruí-lo
não gosto de fazer poemas
quando aflora meu mau humor
mas o olho com que me olho
e com que contemplo os meus abismos
definitivamente
não é o olho com que olho
os humanos que hoje habitam esse belo planeta
[vê-se que o meu mau humor
torna-se mais negro e mau
quando olho os olhos
dos demais homines sapientes]
é esta a minha sina de pretenso poeta
se olho para dentro de mim eu me ponho a lamentar
se olho para fora de mim eu me ponho a chorar
16.11.2023
(Ilustração: Arnold Böcklin (1827-1901) - a ilha dos mortos, quinta versão)
Ouça esse poema na voz do autor, ISAIAS EDSON SIDNEY, num destes endereços:
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