29 de abr. de 2025

quando eu morrer (adendo)

 



quando eu morrer

que espalhem minhas cinzas

ao vento da tarde

ao pé de uma árvore – uma jabuticabeira talvez –

que ao pó voltarei

porque do pó sou e somos todos feitos

– uma das poucas verdades bíblicas –

pois tudo quanto quero é que por mim

ninguém se lamente nem reze

nem maldiga o quer que tenha feito

– esqueçam-me – é tudo quanto peço

esqueçam-me

– a vida é apenas a chama de uma vela

que um dia se extinguiu e nada – nada mais

[fique talvez um ou outro verso – talvez –

porém nem com isso eu me importarei

já que estarei morto e serei pó e chama extinta]



29.11.2024

(Ilustração: Pablo Picasso - nature morte aux oursins, 1946)

26 de abr. de 2025

penumbrismo

 



que não se estranhe o penumbrismo de meus versos

a culpa de visões tenebrosas está no mundo em que vivo

no mundo em que vivemos todos



violência – esse o paradigma do ser humano

violência que se normatiza

violência que se matiza

em cores boreais

desde o beco escuro da maldade de cada um

a fincar no peito do outro o punhal de prata

a cravar no peito do outro a bala de prata

até a ponta do míssil teleguiado que erra a trajetória

e mata e mata e mata

com gélida indiferença

e com toda a oculta crença

de quem de longe o lançou

o presente de adultos e velhos

e o futuro de crianças e jovens



não há sol

não há luz

não há dó

nos olhos atrás dos tronos

nos olhos atrás das cadeiras giratórias

o véu negro da ganância

cobre os tapetes macios

dos escritórios envidraçados



os tronos giram e giram as cadeiras

dos que mandam e dos que executam

e giram as armas que eles acionam

com o simples apertar de uma tecla vermelha



o presidente

o primeiro-ministro

o ditador de plantão

os generais de estrela na testa

todos eles se solidarizam

com o penumbrismo da dor

todos eles olham o mundo

e veem auroras boreais

apenas auroras boreais

coloridas e belas auroras boreais

no brilho das bombas que lhes dão poder



jogam com corpos destroçados

o xadrez da mais valia

e cada morto conta

conta muitos dólares a mais

na sua conta bancária



se há penumbrismo nos meus versos

que se calem os monstros

que se antolhem os generais

que se acorrentem os donos da guerra

que fechem atrás das grades

todos os assassinos

todos os violentadores

todos os torturadores

[e também todos os poluidores]



e então da penumbra de meus versos

hão de brotar arco-íris

e hão de dançar sobre a terra

as verdadeiras auroras boreais



e quando puder enfim contemplar

essas verdadeiras auroras boreais

e quando passada enfim a tormenta

puder contemplar esses arco-íris da paz

eu calarei para sempre

eu calarei para nunca mais

o penumbrismo de meus versos





28.3.2025

(Ilustração: Antoine Caron -1521-1599 -: Les Funérailles de l'Amour)




Ouça esse texto na voz do autor, ISAIAS EDSON SIDNEY, nestes endereços:

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23 de abr. de 2025

pensamentos


meu pensamento – pássaro esfogueado

que bate as asas por universos desconhecidos

e tece no espaço o desejo ansiado

de que encontre um dia os enredos entretecidos

nos meandros de minhas sinapses partidas



- não me importa que não leiam o que escrevo

meus versos são pães enegrecidos

queimados em fornos ultra aquecidos

depois de amassados e acrescidos do levedo

que flui de miasmas de minha mente



importa apenas que os imagine e crie

como biscoitos que se dissolvem na terra

e não que cada um deles inicie

dentro de mim a derradeira guerra



sou um deus decaído no mais profundo

de todos os infernos já imaginados

corro morro abaixo como cão imundo

que não se livra das sarnas do mundo

nem das feridas das estradas

gemendo e ladrando a cada espinho

que rasga minhas carnes insufladas

de ausências de paz e de carinho


vejo nas telas toda a minha vida

mas não encontro dentro de mim mesmo

qualquer expressão comovida

que não jogue comigo um jogo a esmo


tudo quanto penso me deixa cada vez mais perdido

como se tivesse sido sempre este velho fodido



[como se o que sempre fui fosse este velho fodido]




22.12.2024

(Ilustração: Charles Mellin - caritas romana, c.1628)

20 de abr. de 2025

pelos becos

 



passo a passo à noite pelos becos vazios

sou eu a miar à toa como os gatos vadios



faminto e abandonado cão sabujo

sou eu a remexer os sacos do lixo mais sujo



como um caronte sem rumo e desesperado

sou eu a pescar no rio podre o peixe envenenado



como um anjo azul de asas transparentes

sou eu a beijar a boca da puta sem dentes



esse mergulho na noite que há dentro de mim

só depende de que não encontre o fim

no entorno da madrugada na cidade perdida

onde o sol não nasce nem cura a ferida

que abriu dentro de meu peito estas duas partes


- um sonho inútil e a tola esperança de que as artes

que cães e gatos vadios usam para sobreviver

possam fazer minha vontade de vida renascer





17.12.2023

(Ilustração: Max Rovira - Coeur dans la nuit)


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17 de abr. de 2025

paradoxo

 





se algum dia

eu desaparecer em Paris

não me procurem

em Paris

− eu nunca estive em Paris



se algum dia eu desaparecer

procurem-me no topo de uma nuvem

no fundo de uma fossa marítima

no foguete a caminho da lua



se algum dia

eu desaparecer em Paris

procurem-me nesses lugares

e também em outros

onde nunca estive

− nem nunca estarei

[ou melhor: esqueçam-me]



10.12.2024

(Ilustração: Odilon Redon - o carro de Apolo, c. 1910)

11 de abr. de 2025

palavra perdida

 



diz o sábio que só sabe

que nada sabe

finge o poeta a dor sentida

e são ambos – filósofo e poeta –

dois fingidores da realidade

em busca do que há de mistério

entre o céu e a terra



todo o mistério que há na vida

numa palavra se encerra

mas essa palavra está perdida

nas cinzas do tempo e dos vulcões

e não há qualquer possibilidade

de que sábio ou poeta a encontrem



morrem ambos em derrisões e veleidade

– solitários e ignaros seres humanos –

como todos os demais seres humanos

que não são sábios nem poetas

não sonham sonhos profanos

nem têm ambições de estetas



só com o saber que nada sabe

só com o fingir da dor que sente

poderá a vida – o mistério total –

ser enfim vivida

pelo sábio e pelo poeta

num planeta onde não haja

nem o bem nem o mal



[será humano

demasiado humano

apenas o saber que nada se sabe

e sentir o verso de emoção sempre fingida]





12.1.2025

(Ilustração: Piet Mondrian - Composition with Red
Yellow and Blue: 1935-1942)

8 de abr. de 2025

ócio




dependura-se um quadro de paisagem na parede

estica-se entre dois ganchos uma rede

espicha-se o corpo e deixa-se solta a mente

a vagar sem destino pela tarde dormente



e quando então a noite apresenta suas estrelas

o sonho do sono tranquilo de pensamentos vagos

vai trazer algumas saudades e entretecê-las

ao ócio de doces lembranças de serenos lagos




1.12.2024

(Ilustração: Georges Seurat, 1888)

5 de abr. de 2025

o assassino

 





a lua cheia

à noite rodeia



rodeia a vítima

o assassino

na treva da vindima

cicia o som do sino

morreu – não morreu



do canto do muro

[no escuro]

o canto da coruja

não sei se sou eu

que vivo na noite suja

o canto das carpideiras

ou se é na madrugada

o grito do assassinado



em meio à bruma – o nada

só o tempo – o tempo passado

que goteja na ampulheta



rejeita a sopa o mendigo

ignora já o perigo

- morto na sarjeta

só o luar o rodeia

e tudo é previsível

ao ar intoxicado

[encontra o viciado

a última veia]

o assassino é invisível



à noite rodeia

a luz da lua cheia



[a morte é branca branca da cor do luar]





12.1.2025

(Ilustração: Edvard Munch (1863-1944, Norway): L' Assassin, 1910) 





2 de abr. de 2025

noite vazia

 



quando colho o silêncio da noite

recolho em mim vidas que desejara



penso e repenso meus velhos sonhos

que ficaram na poeira do tempo

tenho apenas a certeza de que valeu

e valeu muito a pena ter sonhado



sem eles não teria a minha vida

sido mais que passos perdidos

– foram os velhos sonhos empoeirados

o motivo mesmo de ainda estar aqui

a recolher no silêncio de uma noite vazia

as vidas vagas que um dia sonhara viver




9.2.2025

(Ilustração: Johan Christian Dahl - Study of Clouds at Full Moon)