30 de ago. de 2025

chocolate amargo






o chocolate amargo

que derrete em minha boca

lembra teus beijos de gata no cio

a cruzar meus caminhos nos becos escuros

de cidades perdidas de eras glaciais



o chocolate amargo

que rola pela minha língua

tem o espanto de teus espasmos

no território de cães famintos

perdidos nas estepes longínquas

de eras de fogo e gelo na formação dos mares



o chocolate amargo

que enche de prazer minhas papilas gustativas

tem o cheiro de flores tropicais

e o espanto de botos a fugir de pororocas

porque esse chocolate amargo

tem o gosto dos sumos de tua boceta





5.2.2021

(Ilustração: Juan Medina)

27 de ago. de 2025

cheiros da infância

 



sinto falta do cheiro de mato

sinto falta do cheiro do grupo escolar



sinto falta do cheiro de terra

quando cai de repente a chuva de verão



sinto falta do cheiro de café

quando escorre pelo coador de pano a água fervente



sinto falta do cheiro de fumaça

do fogão a lenha de minha mãe



sinto falta do cheiro do colchão de palha

que envolvia meus sonhos nas frias noites de lua nova



sinto falta do cheiro da manga-rosa

que o sabiá bicava e derrubava



sinto falta do cheiro das flores do manacá

que plantou um dia a minha avó no quintal lá de casa



[a avó de alvo rosto severo que não conheci]



sinto falta do cheiro do cigarro de palha de meu avô

o fumo negro em suas mãos negras cuidadosamente picado e enrolado



[o avô que uma tosse renitente obrigou a deixar de fumar aos 70 anos]



sinto cheiro do milho verde cozido em panela de ferro

- o milho que virou fubá no moinho do tempo



mas de tantos cheiros da infância

que povoam minhas lembranças

há um cheiro que me abala

há um cheiro que entontece meus sentidos

muito mais que todos os demais

- o cheiro dos braços e abraços de minha mãe





27.5.2025

(Ilustração: Amedeo Modigliani - maternité)

24 de ago. de 2025

cheiro do medo






maresia – o cheiro do mar

floresia – o cheiro das florestas

feromonia – o cheiro dos seres vivos



e o cheiro do medo?

qual é o cheiro do medo?



no pisar do soldado sobre a lama

no troar do canhão ao amanhecer

no brilho do míssil no meio da noite

na essência do sangue dos inocentes

na troca de neurônios entre os hemisférios cerebrais

no ódio incutido entre os povos

no rastro de todos os mártires de todas as guerras

quando viram cinzas todas as esperanças

impregnadas todas elas do desespero

pode-se sentir o cheiro do medo



e o cheiro do medo

é o cheiro de todos os espantos





13.6.2024

(Ilustração: escultura de Lorenzo Bartolini (1777-1850): a ninfa e o escorpião)

21 de ago. de 2025

cheiro de terra





se sinto o cheiro de terra molhada

depois de tanto tempo de estio

retorno à minha vida passada

quando - como um gato vadio -

miava pela rua quando chovia



o futuro estava numa história mal contada

ou na tela de um cinema já demolido

- ficções para caminhos que mal pressentia



se as nuvens vertiam águas represadas

represavam meus olhos as lágrimas sentidas

para o tempo depois do estio de minhas vidas

entre pedras e espinhos de longas jornadas

na geometria confusa dos trilhos das gerais



hoje – quando o cheiro de solo umedecido –

invade meus sentidos – lamento o tempo perdido

e sofro – sofro por não ter uma só lagrima a mais




14.3.2025

(Ilustração: Eric Lacombe - dark abstract portraits)

18 de ago. de 2025

chanson pour Verlaine






quando outono

sonho em vão

com sons oblongos

de cantos longos

de abandono

em meios tons



sofro e choro

e mesmo imploro

mas chega a hora

sem esperança

e só lembrança

na noite nua



cresce a lua

na noite escura

volta a tua

imagem pura

ao sonho vão

de novo outono





29.8.2024

(Ilustração: Alyssa Monks)

 

15 de ago. de 2025

capitalismo canalha

 





abram-se as mentes

de todas as gentes

- o capitalismo está matando a humanidade



canalha o capitalismo

criou no ser humano

o consumir-se pelo consumismo



canalha o capitalismo

é como se apresenta

a desgastar até o osso

o planeta que o alimenta



canalha o capitalismo

que dá uma banana

para a sobrevivência humana



canalha sempre o capitalismo

normatiza o escravismo

nos grilhões da mais valia



canalha mil vezes canalha o capitalismo

que não se rende nem passa

- na sua sanha de megalomania

mata o pobre e mostra a carcaça



11.11.2024

(Ilustração: Cândido Portinari - retirantes, 1944)

12 de ago. de 2025

cão de rua

 



apenas um cão de rua

a ladrar para a lua

um coração vagabundo

solto pelo mundo

sem teto e sem rumo

perdido o prumo

da rota da vida

lambendo cada ferida

das patas cansadas

de pisar nas estradas

o asfalto fervente

um cão sem dente

negro como a noite

acostumado ao açoite

a ladrar para a lua

pobre cão de rua

um coração vagabundo

muito maior que o mundo

mas sem teto e sem prumo

é meu coração sem rumo



8.11.2024

(Ilustração: Candido Portinari - Serenata, 1925)

9 de ago. de 2025

canto final dos miseráveis da terra



os miseráveis da terra

serão sempre

os miseráveis da terra

enquanto os donos da mesa

servirem banquetes a seus acólitos

- governantes

- políticos

- magistrados



sob a cartola de cabeças coroadas

brilham os diamantes da fome

extraídos das bocas murchas

dos miseráveis todos da terra



o mundo gira em torno

das távolas redondas do poder

e o poder só muda de mãos

para continuar nas mesmas mãos

- de filhos

- de netos

- de parentes outros – todos coroados



rios de sangue dos miseráveis da terra

adubam lavouras arcaicas cultivadas

e semeadas

por máquinas robotizadas

a distância por drones guiadas

e essas máquinas azeitadas

de sangue suor e lágrimas

tornam inermes pelas estradas

os braços dos famintos todos

que caminham ao longo das fronteiras

- olhos murchos de escravizados

da fome e da miséria

expulsos das cidades cibernéticas

muradas e gradeadas pelos donos do poder



os povos todos de cada canto

calaram sempre no peito opresso

os seus cantos

os seus gritos

as suas dores

sob o jugo da impotência

sob o estalo dos chicotes

as mentes dominadas

pelas ideologias de deuses e profetas

e os miseráveis da terra

marcharam sempre sobre solos inundados

pisando vermes e restos de usinas de fogo morto



nos círculos fechados do poder sem limite

há falas de ódio sobre os altares dourados

há falas de ódio que jorram das tribunas

há falas de ódio nas sentenças judiciais

há promessas falsas em todas as instâncias

para enganar nos becos sujos

os miseráveis todos da terra

para o tantas vezes falsamente prometido

paraíso perdido e sempre encontrado

pelos donos do poder



nas estradas pavimentadas de ouro

os novos deuses conduzem seus veículos

para o futuro construído sobre os ossos

da civilização esquecida

nos bites e bytes de seus computadores de bordo



e um dia afinal do pesadelo chocalhados

pelos caminhos tortuosos da montanha

não choram mais os miseráveis da terra

na marcha inglória para estrelas distantes

entoam no alto da mais alta montanha

o seu canto derradeiro de esperança e luta



na mente de todos a lembrança de um archote

que no passado os palácios incendiou

lembram esses cantos agora entoados

que um dia o diabo ao capitalismo inventou

lembram esses cantos agora entoados

que um dia o deus dos poderosos

ao capitalismo abençoou

e a todos os povos da terra

o capitalismo escravizou



entoam agora o canto derradeiro

as vozes todas de todos os miseráveis

não haja mordaças que os calem

não haja látegos que os amedrontem

não haja bombas que os impeçam



sob os acordes da canção em dó maior

que soe o som das trombetas

que bata forte a batida dos tambores

que tremam as pedras das estradas

no passo marcado de todos os passos

que já se unem todas as vozes num só grito



que do buraco mais profundo

do mais profundo oco do mundo

arrancam para o vento das estrelas

com a força de todos os demônios

o vendaval que vai enfim destruir

a invenção maior dos deuses e do diabo



não clamam os cantos derradeiros

pela graça de todos os demônios

ou pela fúria de todos os deuses

porque sabem todos

todos os miseráveis da terra

que a graça de todos os demônios

e a fúria de todos os deuses

moram nesse uníssono grito primal

que transborda agora nesta marcha triunfal



para a força de seus braços endurecidos

para a força de suas mãos calejadas

e com essa força enfim reunida

poderão mudar a história

poderão cantar vitória

e jogar bem no fundo do abismo

destroçado e destruído

– o maldito capitalismo



27.8.2024

(Ilustração: Cândido Portinari - retirantes, 1955)

6 de ago. de 2025

cançoneta noturna




o gato dorme ao pé da cama

a noite esfria e o sono não vem

não há nenhum sonho à vista

– só o silêncio

e o lento bater do coração



a cidade rosna o seu sono agitado

minha mente não tem sonhos

apenas pensa e repensa escolhas da vida



pela janela a lua – o luar – o silêncio

a nuvem que passa sombreia a lua

e da sombra

ressurge o passado

que me assombra

- uns olhos frios perdidos no tempo

apunhalam

mais uma vez e muitas vezes

o coração que agora bate

no mesmo ritmo do ronronar da cidade



- o gato acorda – se estica – e dorme de novo

(não o coração)

- no peito para sempre a sombra da saudade



17.10.2024

(Ilustração: Oscar Dominguez, 1957)




3 de ago. de 2025

café na tarde de outono



nesta tarde de outono

talvez eu queira apenas

uma xícara de café

somente uma xícara de café

para lembrar um tempo de outro outono

para lembrar um gesto numa outra tarde de outono

um gesto de erguer uma xícara de café

para os lábios que um dia eu beijei



um gesto

um simples gesto

ficou na minha mente como um mantra

ficou na minha cabeça como um meme

e aquela tarde de outono virou eterna

e aquela tarde de outono não será nunca repetida

mesmo que eu queira agora uma xícara de café



a memória que tenho muda a cada vez que recordo

aquele simples gesto de levar aos lábios

uma xícara de café

não

não era o café o que importava ou importa agora

a memória que falha é a memória do café

o que eu lembro daquela tarde de outono tão distante

são os lábios

aqueles lábios que eu beijei um dia

aqueles lábios que se abriram num esgar

e disseram – naquela outra tarde de outono –

que nunca mais ela queria me ver



e por isso

nessa tarde de outono quando penso numa xícara de café

na verdade sinto apenas a amarga lembrança de uma saudade

que não caberá nunca numa simples xícara de café




12.4.2024

(Ilustração: Édouard Manet)