9 de ago. de 2025

canto final dos miseráveis da terra



os miseráveis da terra

serão sempre

os miseráveis da terra

enquanto os donos da mesa

servirem banquetes a seus acólitos

- governantes

- políticos

- magistrados



sob a cartola de cabeças coroadas

brilham os diamantes da fome

extraídos das bocas murchas

dos miseráveis todos da terra



o mundo gira em torno

das távolas redondas do poder

e o poder só muda de mãos

para continuar nas mesmas mãos

- de filhos

- de netos

- de parentes outros – todos coroados



rios de sangue dos miseráveis da terra

adubam lavouras arcaicas cultivadas

e semeadas

por máquinas robotizadas

a distância por drones guiadas

e essas máquinas azeitadas

de sangue suor e lágrimas

tornam inermes pelas estradas

os braços dos famintos todos

que caminham ao longo das fronteiras

- olhos murchos de escravizados

da fome e da miséria

expulsos das cidades cibernéticas

muradas e gradeadas pelos donos do poder



os povos todos de cada canto

calaram sempre no peito opresso

os seus cantos

os seus gritos

as suas dores

sob o jugo da impotência

sob o estalo dos chicotes

as mentes dominadas

pelas ideologias de deuses e profetas

e os miseráveis da terra

marcharam sempre sobre solos inundados

pisando vermes e restos de usinas de fogo morto



nos círculos fechados do poder sem limite

há falas de ódio sobre os altares dourados

há falas de ódio que jorram das tribunas

há falas de ódio nas sentenças judiciais

há promessas falsas em todas as instâncias

para enganar nos becos sujos

os miseráveis todos da terra

para o tantas vezes falsamente prometido

paraíso perdido e sempre encontrado

pelos donos do poder



nas estradas pavimentadas de ouro

os novos deuses conduzem seus veículos

para o futuro construído sobre os ossos

da civilização esquecida

nos bites e bytes de seus computadores de bordo



e um dia afinal do pesadelo chocalhados

pelos caminhos tortuosos da montanha

não choram mais os miseráveis da terra

na marcha inglória para estrelas distantes

entoam no alto da mais alta montanha

o seu canto derradeiro de esperança e luta



na mente de todos a lembrança de um archote

que no passado os palácios incendiou

lembram esses cantos agora entoados

que um dia o diabo ao capitalismo inventou

lembram esses cantos agora entoados

que um dia o deus dos poderosos

ao capitalismo abençoou

e a todos os povos da terra

o capitalismo escravizou



entoam agora o canto derradeiro

as vozes todas de todos os miseráveis

não haja mordaças que os calem

não haja látegos que os amedrontem

não haja bombas que os impeçam



sob os acordes da canção em dó maior

que soe o som das trombetas

que bata forte a batida dos tambores

que tremam as pedras das estradas

no passo marcado de todos os passos

que já se unem todas as vozes num só grito



que do buraco mais profundo

do mais profundo oco do mundo

arrancam para o vento das estrelas

com a força de todos os demônios

o vendaval que vai enfim destruir

a invenção maior dos deuses e do diabo



não clamam os cantos derradeiros

pela graça de todos os demônios

ou pela fúria de todos os deuses

porque sabem todos

todos os miseráveis da terra

que a graça de todos os demônios

e a fúria de todos os deuses

moram nesse uníssono grito primal

que transborda agora nesta marcha triunfal



para a força de seus braços endurecidos

para a força de suas mãos calejadas

e com essa força enfim reunida

poderão mudar a história

poderão cantar vitória

e jogar bem no fundo do abismo

destroçado e destruído

– o maldito capitalismo



27.8.2024

(Ilustração: Cândido Portinari - retirantes, 1955)

6 de ago. de 2025

cançoneta noturna




o gato dorme ao pé da cama

a noite esfria e o sono não vem

não há nenhum sonho à vista

– só o silêncio

e o lento bater do coração



a cidade rosna o seu sono agitado

minha mente não tem sonhos

apenas pensa e repensa escolhas da vida



pela janela a lua – o luar – o silêncio

a nuvem que passa sombreia a lua

e da sombra

ressurge o passado

que me assombra

- uns olhos frios perdidos no tempo

apunhalam

mais uma vez e muitas vezes

o coração que agora bate

no mesmo ritmo do ronronar da cidade



- o gato acorda – se estica – e dorme de novo

(não o coração)

- no peito para sempre a sombra da saudade



17.10.2024

(Ilustração: Oscar Dominguez, 1957)




3 de ago. de 2025

café na tarde de outono



nesta tarde de outono

talvez eu queira apenas

uma xícara de café

somente uma xícara de café

para lembrar um tempo de outro outono

para lembrar um gesto numa outra tarde de outono

um gesto de erguer uma xícara de café

para os lábios que um dia eu beijei



um gesto

um simples gesto

ficou na minha mente como um mantra

ficou na minha cabeça como um meme

e aquela tarde de outono virou eterna

e aquela tarde de outono não será nunca repetida

mesmo que eu queira agora uma xícara de café



a memória que tenho muda a cada vez que recordo

aquele simples gesto de levar aos lábios

uma xícara de café

não

não era o café o que importava ou importa agora

a memória que falha é a memória do café

o que eu lembro daquela tarde de outono tão distante

são os lábios

aqueles lábios que eu beijei um dia

aqueles lábios que se abriram num esgar

e disseram – naquela outra tarde de outono –

que nunca mais ela queria me ver



e por isso

nessa tarde de outono quando penso numa xícara de café

na verdade sinto apenas a amarga lembrança de uma saudade

que não caberá nunca numa simples xícara de café




12.4.2024

(Ilustração: Édouard Manet)