12 de out. de 2025

vento da montanha

 



quando o vento que vem da montanha

fala comigo

conta-me segredos de cidades desaparecidas

desvenda-me ravinas e voçorocas

inunda e fertiliza minha imaginação

com húmus despejados por cachoeiras escondidas

povoa meus ouvidos de cantos mágicos

da seriema e do uirapuru

traz sabores à minha boca

de frango com quiabo e angu

alumia meus olhos baços

com horizontes recortados

de morros que guardam os traços

de quinhentos anos de iniquidades



quando o vento que vem da montanha

fala comigo

traz lembranças de mel e lembranças de fel

momentos de dor e momentos de felicidades



mesmo assim

quando o vento que sopra da montanha

fala comigo

mata no meu peito todas as minhas saudades





9.2.2025

(Ilustração: escultura de Albert György)

9 de out. de 2025

Uma noite, um gato

 


– Enrodilhe-se e durma!

Disse ao gato.

Theo, o gato, enrodilhou-se e dormiu.

Entre as minhas pernas.

Sobre mim o silêncio da noite

– Até o ronronar do dia.



26.9.2025

(Ilustração: Darya Veretshagina - magic cat) 

6 de out. de 2025

surreal


se um dia eu desparecer

em São Paulo

não procurem meu corpo

no Rio Tietê

porque jamais me jogaria

nas águas fétidas

do Rio Tietê

e essa é a única realidade

que me permito compartilhar

com meus contemporâneos

 

se eu desaparecer

em São Paulo

não procurem meu corpo

num formigueiro qualquer

numa rua do Jabaquara

 

se eu um dia desaparecer em São Paulo

talvez – e esse talvez expressa

todas as dúvidas do mundo –

eu não esteja na verdade

flutuando em nuvens cumulus-nimbos

sentado numa cadeira de palhinha

ou balançando numa rede de dormir nordestina

– às gargalhadas

 

porque a essa altura da minha vida

o mais provável é que eu seja

apenas um anjo torto

um poeta maluco

inventado num verso sem pé nem cabeça

que eu recrio neste poema surreal

 

 

10.12.2024

(Ilustração: Patrice Coppée - fourmis)

3 de out. de 2025

sombras





na tarde quente

pela calçada

desfilam sombras

– somente sombras –



os corpos rijos

estão deitados

em suas tumbas

– só suas sombras –

passeiam lépidas

pela calçada

na tarde quente



as longas sombras

ao lusco-fusco

já quase noite

tarde morrendo



no claro-escuro

as sombras longas

passeiam leves

na tarde morna



os corpos duros

de ossos brancos

deixaram lá

no cemitério



caminham – sombras –

com asas ágeis

de alegres pássaros

no claro-escuro

da tarde fria



lépidas sombras

nos ares fluidas

dançam às vezes

trançando brisa

na noite morna



corpos de nada

apenas sombras

que deixam no ar

doces rabiscos

acres saudades

na noite quente



28.1.2024

(Ilustração: Mia Mäkilä)