23 de nov. de 2025

canções ou poemas

 





não sei se o que componho são canções

não sei se o que escrevo são poemas

canções ou poemas – pouco importa

não canto a vida como a vida devia ser cantada

[não sou cantor de passos perdidos]

não poetizo o estranhamento de poetar

[não sou poeta de rios perdidos]

canto ou revelo em meus versos primitivos

o desencanto de um mundo que se esboroa

como se esboroaram todos os mundos

de todos os poetas que me antecederam

[aliás nem sei bem se sou poeta]



quando escrevo essas linhas tortas

quando relembro algumas luas mortas

quando arrebento no meu peito todas as portas

o sangue de meus olhos fica nos meus olhos

os amores de minha vida ficam pelos caminhos

[pelos caminhos tortos por onde andei]

meus desgostos são meus e apenas meus

e a ninguém importa que eu os guarde

ou que eu os compartilhe com estrelas distantes



se o passado arreganha os dentes para mim

para ele também arreganho meus dentes

e tento fugir dos espinhos que estão rentes

aos caminhos por onde tropeço meus passos



tenho caído em tantos laços

tenho-me em enrocado em tantas raízes aéreas

tenho quebrado tantos sonhos em pedras polidas

tenho-me derriçado por tantas pirambeiras

que os ossos que me doem nesse desleixo de caminhar

só me doem quando paro e descanso



e quando paro e descanso – escrevo

escrevo o que me vem à memória esgarçada

talvez canções

talvez poemas

talvez apenas lamentos aos ventos

diatribes inúteis que amenizam meu caminhar

para um fim que não desejo – é claro –

inexorável – inexoravelmente





6.9.2025

(Ilustração: Valquíria Cavalcante)

20 de nov. de 2025

abismos insondáveis

 




enchi de vazios os espaços vazios de minha solidão

passeei pelos interstícios de sentimentos implausíveis

naveguei pelas profundezas de mágoas e desesperos

para chegar a um porto inundado por águas podres e peixes mortos



meu cérebro cansado das sinapses desconjuntadas

por torpezas que não cometi

por pecados com que sonhei

por escapes e descaminhos desesperados

quase entrou em curto-circuito

e os anseios de dias felizes afundaram de vez

nos vazios de meus abismos insondáveis



22.9.2025

(Ilustração: escultura de Albert György)

17 de nov. de 2025

a pressa dos mortos

 




na praça a fila de mortos

[muitos]

– todos aparentemente calmos –

mesma posição

de rosto para cima e mãos ao longo do corpo

mesmas roupas – todas de baixo –

[calções e cuecas coloridos]

sem camisas

[uma quase nudez de cristos nas cruzes

mas não há cruzes – apenas o asfalto negro

sob seus corpos]

e negros também são todos eles

sim – negros – e homens – todos

todos eles homens de todas as idades

e negros sobre o negrume do asfalto



ao redor deles – pessoas vivas

muita – muita gente – os curiosos de sempre

e uns poucos – muito poucos – parentes atônitos

[mas ninguém chora]

rodeia-os a procissão de mulheres – muitas

e de crianças – algumas [por que estão ali?]

e uns poucos homens – brancos e negros

atônitos todos – e não choram, não: não choram

– apenas os observam com olhos de vidro



os cadáveres – ah sim os cadáveres – eles!

eles estão calmos

aparentemente calmos – mas têm pressa

eles têm pressa de cumprir seu destino

[e não é preciso dizer qual é o destino dos cadáveres]

mas há uma outra pressa que esses mortos

[expostos na praça aos olhos de todos] têm

– a pressa de que algum juiz

[e você que me lê – conhece algum?]

deles se compadeça

e julgue quem os furou com tantas balas

– e tanto ódio!

[ainda que sejam quase todos eles – bandidos]



2.11.2025

(Ilustração: Théodore Géricault - anatomical pieces)

14 de nov. de 2025

POEMAS (QUASE HAIKAI) - CROMOS

 




1.



Jaz a flor – murcha

sobre o túmulo.

Sabes, é tarde demais.



2.



No horizonte – o sol

Se põe. Rompem a tarde

Muitos aplausos.



3.



A lua vem – trazendo

para a noite

perfume de jasmim.



4.



No gramado,

muitas cores: – A roseira

Se Despetalou.



5.



Som de vento

no telhado. Chuva.

Depois – só o silêncio.



6.



O rio que passa

carrega com as águas

– a paisagem.


7



Um sonho de cores

bate na tarde as

asas – um beija-flor.



8



Chuva e sol. Casamento

da viúva e do espanhol:

– Arco-íris.



9



A riscar o azul do céu

da tarde um grito

verde – maritacas!



10



A tarde cai. Depois do

baque, o silêncio da noite é

– só susto.



11



De dentro da toca, o

rato pula. O gato

mia: – seu Fast-food.



12



No mato, o rato;

no rato, o gato: depois,

– um silêncio gordo.



13



A coruja pia. Arrepia.

A pia pinga. – A

pinga esquenta.



14



O frio do inverno torna

mais longa a espera

– da primavera.



15



No quintal, dorme a

gata e – livre, o pardal

a catar minhoca.





2.11.2019 / 29.10.205

(Ilustração: fig Catherine Chauloux)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

11 de nov. de 2025

ESPELHO PARTIDO

 


Aida e Aída. Diferença de tônica. Aida e Aída, diferença de poucos meses. Aida, aquariana e Aída, sagitariana. Nascidas no mesmo dia, 25, e na mesma cidade do mesmo ano. Coincidências que iam ao ponto de parecerem gêmeas idênticas: o mesmo perfil, o mesmo tipo de olhos, a mesma boca, a mesma altura. Não fosse o detalhe de Aida ser loura e Aída, morena, ninguém as distinguiria. Sósias, não irmãs. A coincidência de terem amigos comuns levou-as a saber uma da outra.Acabaram se conhecendo, num barzinho freqüentado por esses amigos. Ao ato de se verem seguiu-se o sentimento incomum para ambas: a paixão. Desse dia em diante, unha e carne. Deixaram amigos, deixaram família, quase deixaram emprego (Aida era secretária e Aída, caixa de banco). Alugaram um pequeno apartamento no Bixiga para serem felizes para sempre. Chamavam a atenção de olhos masculinos e de outros nem tanto. Companheiras fiéis e constantes, fizeram juntas a faculdade de letras e passaram a lecionar na mesma escola: Aida, português e Aída, inglês. Mudaram-se para um apartamento maior, na Paulista, e lá reinavam numa pequena corte de amigos e admiradores. Perderam o viço os cabelos louros de Aida. Pintalgaram-se de branco os cabelos negros de Aída. Pintaram-nos ambas com a mesma cor, o que lhes acentuou a semelhança física. Até amigos de longa data costumavam confundi-las. Imagens invertidas de espelho. Aos sessenta anos, aposentaram-se. Aos setenta, descobriram-se diabéticas. Aos setenta e cinco, poucos dias antes de completarem as bodas de ouro, o espelho partiu. Diante do caixão de Aida, Aída manteve-se serena: não vestiu luto, não chorou uma só lágrima. Depois, vendeu tudo o que ambas possuíam, até o apartamento. Desapareceu. Alguns disseram que fora para a Europa. Outros, que se mudara para o interior de Minas. Só o que se sabe é que, cinco anos depois, um dos amigos que freqüentava o apartamento da Paulista lembrou-se delas num dia de finados e reuniu um grupo remanescente para levar flores ao túmulo de Aida, no Cemitério da Consolação. Surpresa: ao lado da foto de Aida, com a data de nascimento e morte, a fotografia de Aída, ainda jovem e morena. Abaixo, a inscrição: “a vida deste lado do espelho não vale a pena, meu amor”. Sem qualquer outra informação. Vasculhados os documentos legais, descobriram que ela morrera poucas semanas depois de Aida. No atestado de óbito, a causa da morte estava em branco.






Isaias Edson Sidney

quarta-feira, 30 de abril de 2003

Grupo de Contistas de São Paulo


(Ilustração: Diego Rivera - retrato de duas mulheres, 1914)




8 de nov. de 2025

POEMAS FESCENINOS: 20.Se eu fosse...

 

(Dominação feminina: klyster; autoria não identificada)


Imaginá-la a cagar me faz um gosto e um desgosto:

Vejo-a a liberar a massa pastosa e fétida

Que, de qualquer forma, é acariciada

Pelas carnes íntimas de você,

Coisa que eu, sem acesso a esse universo,

Penso valer menos que um troço,

Que um naco de merda.

Ah!, se pelo menos merda eu fosse,

A sua merda!



(2018)


fim

7 de nov. de 2025

POEMAS FESCENINOS: 19.Merda

 



(Johann Nepomuk Geiger,1805 – 1880, Austrian) 




Não reclames que é de pobre

a merda que teu cu caga:

quando minha pica te enraba,

encontra nele a função mais nobre!



(Natal, RN, 7.6.2011)

6 de nov. de 2025

POEMAS FESCENINOS: 18.Boca

 



(Autoria não identificada)




Quem tem boca

não morre à míngua:

se falha o pau,

nunca falha a língua.


4 de nov. de 2025

POEMAS FESCENINOS: 17.Vida

 


(Max Švabinský,1918)


Sopro de leve os pelos

de teu púbis

e abro teus segredos.

Os lábios retêm teu grelo

e tu gemes baixinho.

De novo o sopro, de novo teus pelos

se arrepiam na breve aragem:

é só a vida gozando em minha boca.



3 de nov. de 2025

POEMAS FESCENINOS: 16.Tempo

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2 de nov. de 2025

POEMAS FESCENINOS: 15.Flor de maio

 


(André Lambert - 1884-1929)



Abriste-me teu corpo,

com todo o teu perfume,

com todo o teu orvalho,

por uma noite apenas,

apenas por uma noite.




1 de nov. de 2025

POEMAS FESCENINOS: 14.Poemas de amor

 

(Lenkiewicz - 1978)



Que sejam breves

os poemas de amor.

Breves como o leve

espasmo

de teu corpo,

meu amor, na hora

do orgasmo.