no microcosmo quântico de minha solidão
para que minha voz
não seja tragada pelo silêncio
converso com meu gato
ronrono para ele
ele ronrona para mim
e entendemo-nos assim
se ele me pede ração
dou-lha
se ele me pede água
dou-lha
se ele me pede carinho
dou-lho
sinto-me então um douto poeta lusitano
a usar essas estranhas formas pronominais
mas isso é o de menos em nossa relação
entre mim e meu gato ou entre meu gato e mim
ronrona a solidão de carinhos silenciosos
e pequenas trocas – também silenciosas – e desejos inconfessados
invejo-lhe a rapidez com que se enrodilha e dorme
em cima de meu peito
ao lento baloiçar da rede
em mornas tardes de mormaço e preguiça
[ah! que delicioso lusitanismo esse baloiçar!]
sim – espreguiçamo-nos silenciosamente
espelhando-nos alheios ao mundo feio lá de fora
porque mundo feio lá de fora enrijece nossos sentimentos
e queremos ser fluidos um com o outro
[se é que você que me lê me entende]
não sei se de mim tem ele alguma inveja
embora leia às vezes em seus olhos claros
uma ou outra admoestação
humano como sou [essa obviedade bem humana]
deve achar-me apenas um provedor
e nada mais do que isso
um provedor não só de sua subsistência
mas também de leves e lentas carícias por seu pelo eriçado
[penso eu que os gatos
que vivem ao lado de humanos
só toleram essa companhia em troca
de uma boa dose diária de afagos]
discreto sempre em sua felinidade
jamais se revolta ou se manifesta contra minhas manias
nem eu – discreto sempre em minha humanidade –
jamais implico com as manias dele
– que manias temo-las ambos aos montes
aceitamo-nos assim
tacitamente um para outro
ronronado e miando
humanizando-se ele
felinizando-me eu
se se pode chamar a isso de receita
que seja exemplo para os humanos lá de fora
que é essa a forma que encontramos
de conviver civilizadamente
em nosso microcosmo quântico
não temos medo de buracos negros
que engulam de repente nossas afabilidades
não temos medo de explosões ou big-bangs
que venham do mundo lá de fora
para romper o mágico silêncio
de nossa compartilhada solidão
[talvez seja isso
felicidade
mas nem eu nem ele
temos tal certeza]
10.9.2025
(Ilustração: foto do autor: gato Theo, agosto de 2024)

