2 de dez. de 2025

eu e meu gato

 


no microcosmo quântico de minha solidão

para que minha voz

não seja tragada pelo silêncio

converso com meu gato



ronrono para ele

ele ronrona para mim

e entendemo-nos assim

se ele me pede ração

dou-lha

se ele me pede água

dou-lha

se ele me pede carinho

dou-lho



sinto-me então um douto poeta lusitano

a usar essas estranhas formas pronominais

mas isso é o de menos em nossa relação



entre mim e meu gato ou entre meu gato e mim

ronrona a solidão de carinhos silenciosos

e pequenas trocas – também silenciosas – e desejos inconfessados

invejo-lhe a rapidez com que se enrodilha e dorme

em cima de meu peito

ao lento baloiçar da rede

em mornas tardes de mormaço e preguiça

[ah! que delicioso lusitanismo esse baloiçar!]



sim – espreguiçamo-nos silenciosamente

espelhando-nos alheios ao mundo feio lá de fora

porque mundo feio lá de fora enrijece nossos sentimentos

e queremos ser fluidos um com o outro

[se é que você que me lê me entende]



não sei se de mim tem ele alguma inveja

embora leia às vezes em seus olhos claros

uma ou outra admoestação

humano como sou [essa obviedade bem humana]

deve achar-me apenas um provedor

e nada mais do que isso

um provedor não só de sua subsistência

mas também de leves e lentas carícias por seu pelo eriçado



[penso eu que os gatos

que vivem ao lado de humanos

só toleram essa companhia em troca

de uma boa dose diária de afagos]



discreto sempre em sua felinidade

jamais se revolta ou se manifesta contra minhas manias

nem eu – discreto sempre em minha humanidade –

jamais implico com as manias dele

– que manias temo-las ambos aos montes



aceitamo-nos assim

tacitamente um para outro

ronronado e miando

humanizando-se ele

felinizando-me eu



se se pode chamar a isso de receita

que seja exemplo para os humanos lá de fora

que é essa a forma que encontramos

de conviver civilizadamente

em nosso microcosmo quântico



não temos medo de buracos negros

que engulam de repente nossas afabilidades

não temos medo de explosões ou big-bangs

que venham do mundo lá de fora

para romper o mágico silêncio

de nossa compartilhada solidão



[talvez seja isso

felicidade

mas nem eu nem ele

temos tal certeza]



10.9.2025

(Ilustração: foto do autor: gato Theo, agosto de 2024)