15 de set. de 2025

medos infantis






penso e repenso e tento me lembrar

se tive medos infantis

se em noites de frio ou lua cheia

se em noites de raios e trovões

tive pesadelos que toda criança tem



e tento lembrar se nessas noites de terror

a quem recorria

– ou melhor –

se havia alguém a quem recorrer

além de minha mãe



– talvez um pai –



não

não me recordo de nenhuma noite

de terror

de pesadelo

de raios e trovões

em que tivesse o apoio

em que tivesse o carinho

em que tivesse o abraço

e o regaço

– de um pai



o silêncio do chamado por ele

– o pai

povoou minhas noites

povoa agora minhas lembranças



mesmo que pareça

um bebê chorão retardado

no tempo e no espaço

tomo afinal consciência

de que a falta daquele abraço

de que a falta daquele braço

não há tempo que os redima





31.3.2025

(Ilustração: desenho de John Kenn Mortensen: creepy childhood monsters)

12 de set. de 2025

eu paulistano

 



nasci em São Paulo aos 20 anos

numa manhã de janeiro

(o ano não importa)

juntamente com meu companheiro

um irmão quase gêmeo de meus desenganos



dois caipiras na grande cidade

com poucos rumos a trilhar

somente na bagagem a vontade

de viver

de trabalhar

de estudar



passamos – como sempre acontece

com quem aqui chega e nada conhece –

perrengues mil e muita dificuldade

só não passamos fome porque achamos emprego

e eu até entrei na faculdade



se foi difícil esse engatinhar

não tem sido fácil aqui continuar



meu companheiro de nascimento

cresceu asas e voou logo para outras plagas

e eu aqui vivo 
e não sei 

se entre mais alegrias do que sofrimento

lambendo minhas crias e minhas chagas



daquela manhã distante de janeiro

- quando aos 20 anos aqui nasci –

guardo na retina o instante primeiro

quando esta cidade eu vi

se com ela durante anos e anos cresci

não posso deixar de dizer

que apesar de tudo não sei viver

longe da são paulo em que aos 20 anos nasci





8.7.2025

(Ilustração: São Paulo, Avenida São João,  c. 1965)


9 de set. de 2025

eu e meu nome

 





decomponho em números o meu nome

2 letras I

2 letras S

2 letras A

e as três letras formam o antropônimo ISA

– o nome de meu primeiro alumbramento

[não o alumbramento do poeta

– eu tinha apenas 7 anos –

nada sabia do Recife – nada sabia de alumbramentos]



e daí – eu pergunto

e daí – nada – eu mesmo respondo

são números e coincidências da vida

nada dizem esses números

também nada diz o antropônimo ISA

nem de minha vida nem de meu futuro já passado



o tempo – sempre ele – o maldito tempo

naufragou em rios negros de ilusões

todos os meus futuros e já passados sonhos

naufragou em abraços vazios

todos os meus amores



– ah! esses amores!

tive-os até mais do que imaginara

amores bons e calmos como brisa de outono

amores tempestuosos como um tango argentino

amores duradouros como os arbustos da serra

e até amores inúteis e fúteis

como as lágrimas que por eles derramei

– não me detive por eles

não me penitenciei por eles

e hoje bebo uma taça de vinho por seus naufrágios

e penso na solidão de que me lambuzaram

– esses amores todos –

desespero-me apenas por não os ter na memória

para ver e rever as águas revoltas

que os rolaram montanha abaixo



não importa mais

vivo e sobrevivo

na minha angústia de spleen do século XIX

[tão fora de meu tempo de bites e bytes]



se recorro à memória [e ela me trai

como me traíram os muitos amores]

e se a esses amores

tento voltar de vez em quando

é que me reservo a mim

aquele tanto de masoquismo

[de masoquismo amargo]

que todo poeta deve cultivar



e eu que carrego um nome de letras repetidas

e eu que carrego todo um mar de solidão

desse masoquismo tresloucado

bebo com prazer

gota a gota e cada gota

de todo o seu amargor




13.8.2025

(Ilustração: escultura de Daniel Popper)

6 de set. de 2025

cidade perdida

 


há uma cidade perdida dentro de mim

somente dentro de mim

porque a verdadeira cidade de minhas lembranças

não mais existe nem está perdida

apenas não é mais a cidade que permanece dentro de mim



suas ruas tortas

suas praças mortas

suas árvores secas

suas casas baixas

são só a inspiração para versos de uma saudade

que também está perdida dentro de mim



e não mais faz sentido essa saudade

depois de tanto tempo

apenas sentimento fingido como fingida está a névoa do tempo

que pressinto mais do que sinto fazer estragos na minha memória



se subo ruas e ladeiras de antanho

recrio a inexistência dessa cidade perdida no fundo de mim

e não sou feliz nem infeliz

apenas um poeta tolo a escrever versos para uma saudade idiota



5.3.3024

(Ilustração: Volpi)


3 de set. de 2025

chuva de verão




despenca em meu peito

uma chuva de verão

da nuvem da solidão

fertilizando o eito

onde brotam as flores

negras de paixão

e tirando do leito

o rio das minhas dores





4.3.2024

(Ilustração: Vincent van Gogh - La Pluie, 1889)

 

 

30 de ago. de 2025

chocolate amargo






o chocolate amargo

que derrete em minha boca

lembra teus beijos de gata no cio

a cruzar meus caminhos nos becos escuros

de cidades perdidas de eras glaciais



o chocolate amargo

que rola pela minha língua

tem o espanto de teus espasmos

no território de cães famintos

perdidos nas estepes longínquas

de eras de fogo e gelo na formação dos mares



o chocolate amargo

que enche de prazer minhas papilas gustativas

tem o cheiro de flores tropicais

e o espanto de botos a fugir de pororocas

porque esse chocolate amargo

tem o gosto dos sumos de tua boceta





5.2.2021

(Ilustração: Juan Medina)

27 de ago. de 2025

cheiros da infância

 



sinto falta do cheiro de mato

sinto falta do cheiro do grupo escolar



sinto falta do cheiro de terra

quando cai de repente a chuva de verão



sinto falta do cheiro de café

quando escorre pelo coador de pano a água fervente



sinto falta do cheiro de fumaça

do fogão a lenha de minha mãe



sinto falta do cheiro do colchão de palha

que envolvia meus sonhos nas frias noites de lua nova



sinto falta do cheiro da manga-rosa

que o sabiá bicava e derrubava



sinto falta do cheiro das flores do manacá

que plantou um dia a minha avó no quintal lá de casa



[a avó de alvo rosto severo que não conheci]



sinto falta do cheiro do cigarro de palha de meu avô

o fumo negro em suas mãos negras cuidadosamente picado e enrolado



[o avô que uma tosse renitente obrigou a deixar de fumar aos 70 anos]



sinto cheiro do milho verde cozido em panela de ferro

- o milho que virou fubá no moinho do tempo



mas de tantos cheiros da infância

que povoam minhas lembranças

há um cheiro que me abala

há um cheiro que entontece meus sentidos

muito mais que todos os demais

- o cheiro dos braços e abraços de minha mãe





27.5.2025

(Ilustração: Amedeo Modigliani - maternité)

24 de ago. de 2025

cheiro do medo






maresia – o cheiro do mar

floresia – o cheiro das florestas

feromonia – o cheiro dos seres vivos



e o cheiro do medo?

qual é o cheiro do medo?



no pisar do soldado sobre a lama

no troar do canhão ao amanhecer

no brilho do míssil no meio da noite

na essência do sangue dos inocentes

na troca de neurônios entre os hemisférios cerebrais

no ódio incutido entre os povos

no rastro de todos os mártires de todas as guerras

quando viram cinzas todas as esperanças

impregnadas todas elas do desespero

pode-se sentir o cheiro do medo



e o cheiro do medo

é o cheiro de todos os espantos





13.6.2024

(Ilustração: escultura de Lorenzo Bartolini (1777-1850): a ninfa e o escorpião)

21 de ago. de 2025

cheiro de terra





se sinto o cheiro de terra molhada

depois de tanto tempo de estio

retorno à minha vida passada

quando - como um gato vadio -

miava pela rua quando chovia



o futuro estava numa história mal contada

ou na tela de um cinema já demolido

- ficções para caminhos que mal pressentia



se as nuvens vertiam águas represadas

represavam meus olhos as lágrimas sentidas

para o tempo depois do estio de minhas vidas

entre pedras e espinhos de longas jornadas

na geometria confusa dos trilhos das gerais



hoje – quando o cheiro de solo umedecido –

invade meus sentidos – lamento o tempo perdido

e sofro – sofro por não ter uma só lagrima a mais




14.3.2025

(Ilustração: Eric Lacombe - dark abstract portraits)

18 de ago. de 2025

chanson pour Verlaine






quando outono

sonho em vão

com sons oblongos

de cantos longos

de abandono

em meios tons



sofro e choro

e mesmo imploro

mas chega a hora

sem esperança

e só lembrança

na noite nua



cresce a lua

na noite escura

volta a tua

imagem pura

ao sonho vão

de novo outono





29.8.2024

(Ilustração: Alyssa Monks)

 

15 de ago. de 2025

capitalismo canalha

 





abram-se as mentes

de todas as gentes

- o capitalismo está matando a humanidade



canalha o capitalismo

criou no ser humano

o consumir-se pelo consumismo



canalha o capitalismo

é como se apresenta

a desgastar até o osso

o planeta que o alimenta



canalha o capitalismo

que dá uma banana

para a sobrevivência humana



canalha sempre o capitalismo

normatiza o escravismo

nos grilhões da mais valia



canalha mil vezes canalha o capitalismo

que não se rende nem passa

- na sua sanha de megalomania

mata o pobre e mostra a carcaça



11.11.2024

(Ilustração: Cândido Portinari - retirantes, 1944)

12 de ago. de 2025

cão de rua

 



apenas um cão de rua

a ladrar para a lua

um coração vagabundo

solto pelo mundo

sem teto e sem rumo

perdido o prumo

da rota da vida

lambendo cada ferida

das patas cansadas

de pisar nas estradas

o asfalto fervente

um cão sem dente

negro como a noite

acostumado ao açoite

a ladrar para a lua

pobre cão de rua

um coração vagabundo

muito maior que o mundo

mas sem teto e sem prumo

é meu coração sem rumo



8.11.2024

(Ilustração: Candido Portinari - Serenata, 1925)

9 de ago. de 2025

canto final dos miseráveis da terra



os miseráveis da terra

serão sempre

os miseráveis da terra

enquanto os donos da mesa

servirem banquetes a seus acólitos

- governantes

- políticos

- magistrados



sob a cartola de cabeças coroadas

brilham os diamantes da fome

extraídos das bocas murchas

dos miseráveis todos da terra



o mundo gira em torno

das távolas redondas do poder

e o poder só muda de mãos

para continuar nas mesmas mãos

- de filhos

- de netos

- de parentes outros – todos coroados



rios de sangue dos miseráveis da terra

adubam lavouras arcaicas cultivadas

e semeadas

por máquinas robotizadas

a distância por drones guiadas

e essas máquinas azeitadas

de sangue suor e lágrimas

tornam inermes pelas estradas

os braços dos famintos todos

que caminham ao longo das fronteiras

- olhos murchos de escravizados

da fome e da miséria

expulsos das cidades cibernéticas

muradas e gradeadas pelos donos do poder



os povos todos de cada canto

calaram sempre no peito opresso

os seus cantos

os seus gritos

as suas dores

sob o jugo da impotência

sob o estalo dos chicotes

as mentes dominadas

pelas ideologias de deuses e profetas

e os miseráveis da terra

marcharam sempre sobre solos inundados

pisando vermes e restos de usinas de fogo morto



nos círculos fechados do poder sem limite

há falas de ódio sobre os altares dourados

há falas de ódio que jorram das tribunas

há falas de ódio nas sentenças judiciais

há promessas falsas em todas as instâncias

para enganar nos becos sujos

os miseráveis todos da terra

para o tantas vezes falsamente prometido

paraíso perdido e sempre encontrado

pelos donos do poder



nas estradas pavimentadas de ouro

os novos deuses conduzem seus veículos

para o futuro construído sobre os ossos

da civilização esquecida

nos bites e bytes de seus computadores de bordo



e um dia afinal do pesadelo chocalhados

pelos caminhos tortuosos da montanha

não choram mais os miseráveis da terra

na marcha inglória para estrelas distantes

entoam no alto da mais alta montanha

o seu canto derradeiro de esperança e luta



na mente de todos a lembrança de um archote

que no passado os palácios incendiou

lembram esses cantos agora entoados

que um dia o diabo ao capitalismo inventou

lembram esses cantos agora entoados

que um dia o deus dos poderosos

ao capitalismo abençoou

e a todos os povos da terra

o capitalismo escravizou



entoam agora o canto derradeiro

as vozes todas de todos os miseráveis

não haja mordaças que os calem

não haja látegos que os amedrontem

não haja bombas que os impeçam



sob os acordes da canção em dó maior

que soe o som das trombetas

que bata forte a batida dos tambores

que tremam as pedras das estradas

no passo marcado de todos os passos

que já se unem todas as vozes num só grito



que do buraco mais profundo

do mais profundo oco do mundo

arrancam para o vento das estrelas

com a força de todos os demônios

o vendaval que vai enfim destruir

a invenção maior dos deuses e do diabo



não clamam os cantos derradeiros

pela graça de todos os demônios

ou pela fúria de todos os deuses

porque sabem todos

todos os miseráveis da terra

que a graça de todos os demônios

e a fúria de todos os deuses

moram nesse uníssono grito primal

que transborda agora nesta marcha triunfal



para a força de seus braços endurecidos

para a força de suas mãos calejadas

e com essa força enfim reunida

poderão mudar a história

poderão cantar vitória

e jogar bem no fundo do abismo

destroçado e destruído

– o maldito capitalismo



27.8.2024

(Ilustração: Cândido Portinari - retirantes, 1955)