31 de ago. de 2009

poemas da guerra - 1





(Brueghel - o triunfo da morte)


Vou publicar uma série de oito poemas escritos em 2003, no auge da guerra do Iraque. Embora datados, traduzem, em qualquer época, o meu repúdio à mais terrível e abominável invenção dos homens – a guerra.




1. 

god save america




god save america

quando os casulos negros desembarcarem

do anti-futuro de lutas inúteis


god save america

quando contarem os casulos negros

nos portos e aeroportos


god save america

quando os casulos negros invadirem

lares e bares e guetos


god save america

quando a casa branca virar

um imenso casulo negro


(Goya - saturno)

30 de ago. de 2009

A MÁQUINA DE LAVAR ROUPAS



(Jean-Baptiste Siméon Chardin)




Diz o Vaticano que a máquina de lavar roupas

Libertou as mulheres

Fez mais por elas que todas as lutas

Que todas as santas e prostitutas

Que a igreja queimou como bruxas

Que a máquina de lavar roupas

È mais importante que trepar sem pecado

Que a máquina de lavar roupas

Conformou o cérebro da mulher moderna

Mais até que queimar sutiãs em praça pública

Mais até que pensar afinal que não são as mulheres

Costelas quebradas do plexo sem nexo do macho

E então o Vaticano decretou

Que mulher tem que ter máquina de lavar roupa

Para ser livre e não morrer como bruxa

Na fogueira da santa ignorância

Ah! a máquina de lavar roupas

Vamos todos em nome daquele senhor decrépito

Que chamam de papa vamos todos comprar

Máquinas e máquinas de lavar roupas

Vamos sim vamos comprar milhões de máquinas

De lavar roupas e então vamos lavar

Muito bem lavadas todas as roupas clericais

Daquele velhinho tão simpático que diz

Que diz que mulher tem que ter

Máquina de lavar roupas para ser enfim

Livre livre livre como todas as santas tristes

Que frequentam os altares do Vaticano

E não serem queimadas como bruxas

Nas eternas fogueiras que nascem

Da língua afiada de todos os padres

Uma máquina de lavar roupas por favor

Senhores que me ouvem uma máquina de

Lavar roupas para esta senhora que ri

E mais para aquela que chora e mais

Para aquela que nem sabe o que diz o velho papa

E para todas todas todas

As mulheres do mundo todas sem exceção

Uma máquina de lavar roupas

Uma máquina de lavar roupas

Sem dó sem piedade uma máquina de lavar roupas.


29 de ago. de 2009

RECOMEÇO



(Oswaldo Sagatesgui)




Hoje, quero esquecer
tantos caminhos que trilhei,
tantos espinhos que não sei
mais em quantos quartos sonhei
tantos os lençóis amassados
as luas, os sóis e os gritos amuados
hoje quero tudo esquecer

te espero mudo e quedo
sem pensar, sem nem
mesmo me mexer como
um cofre de segredo
te aguardo no resguardo
de tantos amores que nem
flores vou te oferecer
porque hoje quero
tudo, tudo esquecer

quieto, quedo, parado, o teu olho
apenas o teu olho me moverá
escolho o branco dos lençóis
e tranco os lábios à tua espera
e tremo à mera aragem lá fora
na folhagem de taful e quero
sim, tudo esquecer

por tudo isso que me dás
sou teu menino, sou teu noviço,
e quero, espero, por fim
me leves por tuas trilhas
por teus meandros,
compartilhes comigo
os teus caminhos,
as tuas ilhas, e para
tudo esquecer afinal
jogarei, sim, o teu jogo
para que fique em mim
como no mar fica o sal
só o teu desejo e o teu fogo.


28 de ago. de 2009

A FLOR E A FONTE (*)








Coisas da infância: o medo. Às vezes, terror pânico. De um fantasma sob a cama. De puxão na coberta à noite, o espírito do avô há muito tempo morto. De cemitério. De qualquer coisa. Toda criança passa por esse período de medo, como um aprendizado para a vida, talvez? Sei lá.

Sei que eu tinha um amigo, lá pelos sete anos, que morria de medo de umas árvores imensas que havia na ladeira próxima à nossa casa. Diziam que, em suas copas, apareciam caixões de defuntos, fantasmas. Eu não, nunca tive medo de defuntos e almas penadas. Dava risada delas, das almas penadas.

Corajoso, eu? Que nada: o que atormentava mesmo minha infância eram versos de um poeta de nome de árvore, ouvidos pela primeira vez na voz de uma professora, lá pelo meio do ano, quando começávamos a tropeçar nas letras, semi-alfabetizados. Estes versos martelavam minha cabeça, e me enchiam de medo:


"Deixa-me, fonte!" Dizia

A flor, tonta de terror.

E a fonte, sonora e fria, 

Cantava, levando a flor. 

"Deixa-me, deixa-me, fonte!" 

Dizia a flor a chorar: 

"Eu fui nascida no monte... 

"Não me leves para o mar". 


Outro amigo não passava perto de cemitério nem que boi voasse. Nem para pegar pipa ou pregar peças, que o mais medroso era sempre ele, a tremer todo quando algum engraçadinho falava que vira um fogo sair da sepultura, de noite, em noite lua nova. Eu, não. Medo de cemitério? Que bobo! Eu dava risada. Mas, tinha mesmo era medo da fonte, daquela fonte maldita, daquela fonte sonora e fria que assombrava minhas noites, levando a coitadinha da flor que enchia de gemidos as minhas noites de terror:


E a fonte, rápida e fria,

Com um sussurro zombador,

Por sobre a areia corria, 

Corria levando a flor. 

"Ai, balanços do meu galho, 

"Balanços do berço meu; 

"Ai, claras gotas de orvalho 

"Caídas do azul do céu!... "


E eu acordava de madrugada, molhado de suor. Mãe zangava: já é grande e ainda faz xixi na cama! Eu ficava acordado um tempão, tentando não pensar. Lembrava, então, um outro amigo, que mostrava uma foto antiga, um lago e umas árvores ao fundo. No meio da ramagem, a gente via, via claramente, o contorno de um rosto que ele dizia ser da avó morta. Todos ficavam arrepiados, menos eu. Todos medrosos. Menos eu. Mas, quando fechava os olhos para voltar a dormir, lá vinham os versos a me assombrar:


Chorava a flor, e gemia,

Branca, branca de terror,

E a fonte, sonora e fria 

Rolava levando a flor. 

"Adeus, sombra das ramadas, 

"Cantigas do rouxinol; 

"Ai, festa das madrugadas, 

"Doçuras do pôr do sol;"


Apertava mais os olhos, colava as mãos aos ouvidos. Lembrava da história do grilo, na casa de outro amigo. Um grilo que assombrava a todos, toda noite. Vindo não se sabia de onde. Um canto que começava à meia noite. E todos, desesperados, buscavam o grilo por todos os cantos da casa. O pai mandou, até, tirar todo o assoalho da sala, de onde podia vir o canto estridente. Nada. Toda noite o mesmo tormento. E dizia-se que era o espírito de um parente assassinado naquela casa, há muitos anos, que cantava toda noite como grilo, para despertar a consciência do assassino nunca descoberto. E todo mundo morria de medo de almas assassinadas que pudessem nos assombrar de noite. Eu, não. Dava risada. Esquecia-me, no momento, das noites de terror, com os versos que me atormentavam, aquela flor que não queria ir para o mar e a fonte a levava, mesmo assim, para o mar, tenebroso mar que eu nunca vira. E os versos daquele poeta martelavam os meus ouvidos, num verdadeiro terror:


"Carícia das brisas leves

"Que abrem rasgões de luar...

"Fonte, fonte, não me leves, 

"Não me leves para o mar!..." 


Ah, os medos da infância! Mal sabia eu que aquele terror pânico da fonte assombrada seria para sempre o terror que carregaria em minha vida malsinada. Que os versos do poeta que martelavam minha cabeça – “fonte, fonte, não me leves, não me leves para o mar!” – que só eles repetiam e repetiam em minha cabeça – que esses versos não terminavam aí, que havia ainda um desfecho que só muitos anos depois, já adulto, fui entender. Entender e voltar a ter o mesmo terror de menino, porque aqueles versos apavorantes eram muito piores do que eu temia quando criança, porque tal qual dizia o poeta


As correntezas da vida

E os restos do meu amor

Resvalam numa descida 

Como a da fonte e da flor...





(*) A FLOR E A FONTE, poema de Vicente de Carvalho



(Ilustração: Anderson Bolcato - a cachoeira de Itumirim)


(Você poderá ouvir essa crônica na voz do autor, no podcast indicado ao lado)