28 de ago. de 2009

A FLOR E A FONTE (*)








Coisas da infância: o medo. Às vezes, terror pânico. De um fantasma sob a cama. De puxão na coberta à noite, o espírito do avô há muito tempo morto. De cemitério. De qualquer coisa. Toda criança passa por esse período de medo, como um aprendizado para a vida, talvez? Sei lá.

Sei que eu tinha um amigo, lá pelos sete anos, que morria de medo de umas árvores imensas que havia na ladeira próxima à nossa casa. Diziam que, em suas copas, apareciam caixões de defuntos, fantasmas. Eu não, nunca tive medo de defuntos e almas penadas. Dava risada delas, das almas penadas.

Corajoso, eu? Que nada: o que atormentava mesmo minha infância eram versos de um poeta de nome de árvore, ouvidos pela primeira vez na voz de uma professora, lá pelo meio do ano, quando começávamos a tropeçar nas letras, semi-alfabetizados. Estes versos martelavam minha cabeça, e me enchiam de medo:


"Deixa-me, fonte!" Dizia

A flor, tonta de terror.

E a fonte, sonora e fria, 

Cantava, levando a flor. 

"Deixa-me, deixa-me, fonte!" 

Dizia a flor a chorar: 

"Eu fui nascida no monte... 

"Não me leves para o mar". 


Outro amigo não passava perto de cemitério nem que boi voasse. Nem para pegar pipa ou pregar peças, que o mais medroso era sempre ele, a tremer todo quando algum engraçadinho falava que vira um fogo sair da sepultura, de noite, em noite lua nova. Eu, não. Medo de cemitério? Que bobo! Eu dava risada. Mas, tinha mesmo era medo da fonte, daquela fonte maldita, daquela fonte sonora e fria que assombrava minhas noites, levando a coitadinha da flor que enchia de gemidos as minhas noites de terror:


E a fonte, rápida e fria,

Com um sussurro zombador,

Por sobre a areia corria, 

Corria levando a flor. 

"Ai, balanços do meu galho, 

"Balanços do berço meu; 

"Ai, claras gotas de orvalho 

"Caídas do azul do céu!... "


E eu acordava de madrugada, molhado de suor. Mãe zangava: já é grande e ainda faz xixi na cama! Eu ficava acordado um tempão, tentando não pensar. Lembrava, então, um outro amigo, que mostrava uma foto antiga, um lago e umas árvores ao fundo. No meio da ramagem, a gente via, via claramente, o contorno de um rosto que ele dizia ser da avó morta. Todos ficavam arrepiados, menos eu. Todos medrosos. Menos eu. Mas, quando fechava os olhos para voltar a dormir, lá vinham os versos a me assombrar:


Chorava a flor, e gemia,

Branca, branca de terror,

E a fonte, sonora e fria 

Rolava levando a flor. 

"Adeus, sombra das ramadas, 

"Cantigas do rouxinol; 

"Ai, festa das madrugadas, 

"Doçuras do pôr do sol;"


Apertava mais os olhos, colava as mãos aos ouvidos. Lembrava da história do grilo, na casa de outro amigo. Um grilo que assombrava a todos, toda noite. Vindo não se sabia de onde. Um canto que começava à meia noite. E todos, desesperados, buscavam o grilo por todos os cantos da casa. O pai mandou, até, tirar todo o assoalho da sala, de onde podia vir o canto estridente. Nada. Toda noite o mesmo tormento. E dizia-se que era o espírito de um parente assassinado naquela casa, há muitos anos, que cantava toda noite como grilo, para despertar a consciência do assassino nunca descoberto. E todo mundo morria de medo de almas assassinadas que pudessem nos assombrar de noite. Eu, não. Dava risada. Esquecia-me, no momento, das noites de terror, com os versos que me atormentavam, aquela flor que não queria ir para o mar e a fonte a levava, mesmo assim, para o mar, tenebroso mar que eu nunca vira. E os versos daquele poeta martelavam os meus ouvidos, num verdadeiro terror:


"Carícia das brisas leves

"Que abrem rasgões de luar...

"Fonte, fonte, não me leves, 

"Não me leves para o mar!..." 


Ah, os medos da infância! Mal sabia eu que aquele terror pânico da fonte assombrada seria para sempre o terror que carregaria em minha vida malsinada. Que os versos do poeta que martelavam minha cabeça – “fonte, fonte, não me leves, não me leves para o mar!” – que só eles repetiam e repetiam em minha cabeça – que esses versos não terminavam aí, que havia ainda um desfecho que só muitos anos depois, já adulto, fui entender. Entender e voltar a ter o mesmo terror de menino, porque aqueles versos apavorantes eram muito piores do que eu temia quando criança, porque tal qual dizia o poeta


As correntezas da vida

E os restos do meu amor

Resvalam numa descida 

Como a da fonte e da flor...





(*) A FLOR E A FONTE, poema de Vicente de Carvalho



(Ilustração: Anderson Bolcato - a cachoeira de Itumirim)


(Você poderá ouvir essa crônica na voz do autor, no podcast indicado ao lado)


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