Olho para o lado e vejo, sobre a mesa,
Uma clepsidra avariada
A contar meus dias sobre a terra.
Deliro.
A lira dilui em lenta agonia
A pavana de meus sonhos loucos.
Não tenho mais o direito
De defender-me. O juiz
Diz e olha, feliz, o pingar constante
Da clepsidra, cujo
Recipiente inferior, quase cheio,
Me apavora: está na hora, está na hora.
Freia o meu gesto de inverter
O demoníaco contador, o meirinho,
Um sujeito de maus bofes e chifres de diabo.
Recolho-me, encolho-me, repolho
Em horta de crisálidas. E meu olho,
Meu único olho ainda bom,
Não enxerga um palmo adiante do nariz.
E o juiz, cuja toga velha e suja tapa ainda mais
A minha visão, ri e diz, e diz, feliz: agora
É a hora. E rediz: é a hora, agora. Recolho-me
Na minha vil condição de réu sem direitos,
Sem tempo, sem nada, nu no tribunal,
Simulacro imperfeito de mim mesmo.
E a clepsidra goteja, goteja, goteja.
(Ilustração: Iona Teodora Klein - clepsidra)
Você pode ouvir este poema na voz do autor, Isaias Edson Sidney, neste endereço de podcast: