28 de fev. de 2010

BRASILIANAS - 20






da carta de Caminha (4)


a feição deles
ai Jesus, ai Jesus
bons rostos
ai Jesus, ai Jesus,
narizes bem feitos
ai Jesus, ai Jesus
sem cobertura alguma
ai, Jesus, ai, Jesus,
andam todos nus
ai, Jesus, ai
todos nus,
Jesus, ai,
e as vergonhas
ai, Jesus, ai,
nem eram fanadas
ai, Jesus
pelo meu santo bento
ai!
que não me aguento!


11.4.2000

(Ilustração: os primeiros brasileiros - Museu Nacional)




27 de fev. de 2010

BRASILIANAS - 19




da carta de Caminha (3)

mandaram a terra
pequena nau
a bordo um tal
de Nicolau

ah! que glória na terra
se índio fizera
fizera cara de mau
se índio sentara
sentara no pau
esse tal, esse tal de Nicolau

11.4.2000

(Ilustração: descobrimento do Brasil - índios)

26 de fev. de 2010

BRASILIANAS - 18




da carta de Caminha (2)

botelhos no mar
e mais: rabos-de-asnos

furabuchos no ar

mareados os mareantes
gritaram de cá:
- terras ao mar!
outros mareantes de lá:
- mas onde, ó pá?
de lógica navegante:
- se dos asnos os rabos avistamos
terras haverá

e terra se avistou:
estava para sempre a descoberto
o país que o luso povo pisou

11.4.2000

(Ilustração: Descobrimento do Brasil - caravela portuguesa)

25 de fev. de 2010

BRASILIANAS - 17






da carta de Caminha (1)

na história de Portugal
há um Vasco que navegou
na história do Brasil
há um Vasco que não chegou



11.4.2000
(Ilustração: nau medieval)

24 de fev. de 2010

BRASILIANAS - 16






diante do micro
a computar saudades
deixo que numa tela de descanso
obdure-se a minha mente



11.4.2000

(Ilustração: Portinari – chorinho)

23 de fev. de 2010

BRASILIANAS - 15





olhar horizontes não é preciso:
só é preciso o baixar dos olhos

sonhar não é preciso:
só é preciso o construir

criar não é preciso:
só é preciso o praticar

amar não é preciso:
só é preciso o despedir-se

viver também não é preciso:
só há precisão no morrer

16.12.99

(Ilustração: Tarsila do Amaral – a lua)



22 de fev. de 2010

BRASILIANAS - 14







Mineiro é bicho que não navega,
não por não ter onde fazê-lo:
é que ele nunca se entrega
ao vento e ao mar sem antes muito zelo.

O vento, em Minas, é sonho;
o mar, áspera montanha:
ao vento a vida disponho,
no mar, a morte me assanha.

Porém, por tudo quanto passeio,
deixo em Minas meus navios:
se pelas ondas do mar anseio,
bato em asas de vento os meus desvios.


11.10.99

(Ilustração: Portinari – dom Quixote)



21 de fev. de 2010

BRASILIANAS - 13





ao fim,
ao muro

ante o muro,
o fim

após o fim,
o muro

até o fim,
o muro

com o fim,
o muro

contra o muro,
o fim

do fim
do muro

desde o fim,
o muro
entre o fim
e outro muro

para o fim,
perante o muro


por fim,
o muro

mas sem muro,
o fim

sob o muro,
sobre o fim,
trás wall
brazil wall street



(Ilustração: Tarsila do Amaral – anjos)

6.10.99

20 de fev. de 2010

BRASILIANAS - 12







Se tivesse vindo em lombo
de burro – ou montado no seu próprio ego –
(em 1492)
esse tal de Colombo
não seria menos cego.
E 8 anos depois,
também idiota como o tal
aí em cima,
aqui chegou o Cabral.
Não percebeu nenhum dos dois
o que naquele tempo ocorreu:
eles, terras e riquezas comemoraram,
enquanto os daqui só lamentaram
tê-los encontrado – o europeu.


30.8.99

(Ilustração: Portinari – mestiço)


19 de fev. de 2010

BRASILIANAS - 11



AUTOBIOGRAFIA

Ex-professor. Agora,
Bancário.
E louco: busca no teatro
algum salário.



20.8.99

(Ilustração: Tarsila do Amaral – o ovo)

18 de fev. de 2010

BRASILIANAS - 10







“tio, me dá um real...

um real, tio, é a vida
é a vida cheirada,
é a vida comida
é a vida enrolada
em papel de jornal
é a vida sem bola
na nóia da cola
um real pelo medo
pintado na cara
um real pelo dedo
que puxa o gatilho
o olho no brilho
o brilho da fome
a fome que come
o brilho da faca
e a faca que vale
um real, tio, um real
e antes que eu fale
da surra do pai
da vida vadia
da vida que eu via
no sangue que cai
do brilho do tiro
do leite que eu tiro
do medo do otário
tio, um real, é tudo
tudo que peço
de todo o salário
que eu ganho e não meço
às vezes exijo
às vezes imploro
mas nunca eu choro
se tenho na arma
o dedo mais rijo
em toda a cidade
que mata quem teme
não sou o que treme
se a fome me invade
sou sempre aquele
que mostra a cara
não foge da rua
a vida não para
no tiro e no risco
da faca na cara
do medo estampado
atrás da vidraça
no meio da praça
o corpo estirado
um real, meu tio,
e afundo no frio
da noia do craque
sem medo do baque
sem medo de escuro
que a vida que trago
é o tempo que eu duro
é tempo de estrago
não tenho futuro...”

14.7.99

(Ilustração: Portinari – menino com pião
)


17 de fev. de 2010

BRASILIANAS - 09



que todos brinquemos
no grande terreiro

façamos quizomba
soltemos balão
joguemos a bomba
da festa de são joão

riamos
cantemos
choremos
rimemos

façamos a festa
a festa da raça
no grande terreiro

à luz do cruzeiro
riamos e cantemos
ao sol escaldante
pulemos
dancemos

pulando e cantando
te convida à dança
o povo que lança
o grito da festa

embora gigante
moleque ainda és

tu bates os pés
no ritmo faceiro
fazendo com todos
no grande terreiro
a festa constante
da gente inconstante


pulemos
cantemos
em grandes terreiros
o orgulho que temos
de ser brasileiros

e todos os versos que acima escrevi
são versos de sonho, são versos de louco
à pátria que sonho
não à pátria que vivo

são versos que piram
diante do dia
que mostra dentes podres
em bocas mortas

são versos de alienante loucura
redondilhos de sorte que não cantam a morte
rimas de ouro que buscam o tesouro
há muito espoliado há muito escondido
no fundo de malditas caravelas

(ainda bem que muitas delas
perdidas estão no fundo dos mares:
quem como louco roubou,
também tombou, também tombou)

e o sino de bronze convida a rezar
aos crentes cobertos de noites cristãs
e a igreja barroca escancara como um ventre de puta
ao peregrino povo que canta que dança que pula que reza
o tesouro roubado do ventre da terra
do sangue dos homens
e do veio de ouro como da veia dos homens
somente restou o cadáver mumificado
da morta esperança
(por isso, aqui me calo)


11.6.99

(Ilustração: Tarsila do Amaral – feira)


16 de fev. de 2010

BRASILIANAS - 08






na terra que dá
tudo o que se planta
a procissão de saúvas
louva o trabalho
do pobre e do rico

25.5.99

(ILustração: Portinari – colheita de café)

15 de fev. de 2010

BRASILIANAS - 07




havia um baobá
debaixo do baobá uma cabana
dentro da cabana
uma fumaça feliz

aí, veio o capataz
caçador de negro
e a fumaça que ao baobá subia
nunca mais
ao baobá subiu


25.5.99

(Ilustração: Tarsila do Amaral – cartão postal)


14 de fev. de 2010

BRASILIANAS - 06






havia uma taba

havia um índio

havia um curumim


a taba, o gato comeu
o índio, o branco espantou
e o curumim...

o curumim continua sonhando com as estrelas



25.5.99

(Ilustração: Portinari – índia e mulata)


13 de fev. de 2010

BRASILIANAS - 05





teu povo vermelho
da cor de urucum

teu povo do mato
que come o que caça

teu povo das águas
que pesca o bom peixe

onde?

onde o urucum
de festas ancestrais?

onde o bicho matreiro
que a onça comeu?

onde o peixe mais limpo
que as águas do rio?

teu povo, onde?




(Ilustração: Tarsila do Amaral – pastoral)



12 de fev. de 2010

BRASILIANAS - 04







tem marcas de botas
a terra que buscas?

tem cheiro de tinta
a terra que queres?

tem rastro de ódios
a terra que invades?

tem cheiro de sangue
a terra em que plantas?

amigo, desta terra o teu pão
nunca colherás
que a pátria que pesa o preço
de cada côvado de terra
pelo ouro do estrangeiro
deixou no chão que cobiças
cheiro, rastro e marcas
indeléveis



20.5.99

(Ilustração: Portinari – colheita de algodão)


11 de fev. de 2010

BRASILIANAS - 03






não há pátria
não há
não há mais etnias
não há
não há mais trópicos
de câncer ou capricórnio
entre um povo e seu contrário
não há
não há mais babel
não há mais o olhar estrangeiro
a vigiar os atos
não há
não há mais pátria
oh apátridas
não mais molossos
a vigiar os ossos
não há mais bombas
não há

o juízo afinal
a unir o final
de todos os utópicos
20.5.99


(Ilustração: Tarsila do Amaral – operários)


10 de fev. de 2010

BRASILIANAS - 02



- porto ou porta?
- aeroporto?
- aeroporta!
- importa?



22.3.99

(Ilustração: Portinari - pipas)

9 de fev. de 2010

BRASILIANAS - 01




sábios
os lábios
bem cerrados
em meio à crise

promovidos
os ouvidos
bem abertos
em meio à crise

felizes
os narizes
bem franzidos
em meio à crise

aos escolhos
os dois olhos
não soçobram
em meio à crise

atrevidos
os sentidos
bem aguçados
em meio à crise

... enquanto o barco balança
... enquanto balança o barco...


22.3.99

(Ilustração: Tarsila do Amaral – o pescador)

8 de fev. de 2010

CLEPSIDRA



Olho para o lado e vejo, sobre a mesa,
Uma clepsidra avariada
A contar meus dias sobre a terra.
Deliro.
A lira dilui em lenta agonia
A pavana de meus sonhos loucos.
Não tenho mais o direito
De defender-me. O juiz
Diz e olha, feliz, o pingar constante
Da clepsidra, cujo
Recipiente inferior, quase cheio,
Me apavora: está na hora, está na hora.
Freia o meu gesto de inverter
O demoníaco contador, o meirinho,
Um sujeito de maus bofes e chifres de diabo.
Recolho-me, encolho-me, repolho
Em horta de crisálidas. E meu olho,
Meu único olho ainda bom,
Não enxerga um palmo adiante do nariz.
E o juiz, cuja toga velha e suja tapa ainda mais
A minha visão, ri e diz, e diz, feliz: agora
É a hora. E rediz: é a hora, agora. Recolho-me
Na minha vil condição de réu sem direitos,
Sem tempo, sem nada, nu no tribunal,
Simulacro imperfeito de mim mesmo.
E a clepsidra goteja, goteja, goteja.


(Ilustração: Iona Teodora Klein - clepsidra)


Você pode ouvir este poema na voz do autor, Isaias Edson Sidney, neste endereço de podcast: