25 de fev. de 2018

poememe







sou persistente como o diabo

ao tentar ser feliz

neste vale de lágrimas

ainda que saiba que nada sei

valho-me do sinal das cruzes

que planto pelos caminhos

não lavo as minhas mãos

na bacia das almas impuras

nem rezo na cartilha

dos que sonham com o ovo

antes da gala do galo

no útero da galinha

e rezo e replico todos os dias

mãos postas e joelhos no milho

que deus me livre de deus

agora e na hora

da minha morte amém


23.2.2018





(Ilustração: escultura de Raul Boledi - sagrado; foto do escultor)





23 de fev. de 2018

Quando chegar a hora misteriosa







Quando chegar a hora misteriosa,

tu não terás a palavra certa:

não cumpriste as regras

e deixaste a vida passar.



Teus dedos não conseguirão agarrar

o sopro do vento final.



Teus olhos já não mais terão a luz

para ver o brilho da estrela.



Teu cérebro murcho não mais sonhará

os sonhos de paz de tua juventude.



Teu sangue entupirá as veias

transformado no negro pó das tumbas

e a hora misteriosa te encontrará nu

como quando nasceste.



Tuas palavras morrerão no eco das pedras,

e a noite final povoará de monstros

cada pensamento que ousares ter.



Mas não te preocupes: tu não mais sofrerás.





S.P. 15.3.86



(Ilustração: Jonathan Franklin - Salute Circus Clowns)




22 de fev. de 2018

No quiero vivir









No quiero vivir

llorando quejas

y hablando de lirismos

soy el alma universal

y no puedo callarme

mientras sueña el mundo

com ilusiónes lejanas.

No quiero sufrir

las dolores del alma

y quedarme callado

cuando la vida transcurre

llena de mistérios:

soy hombre

y no quiero

hacerme um nuevo diós.




1.6.1966



(Ilustração; Jacques-Louis David, 1788 - Helena e Páris)



21 de fev. de 2018

A TODOS OS MESTRES








Era uma vez

o aluno e seu mestre.

Era uma vez:

o aluno perguntava

perguntava ao mestre 

sobre as estrelas e seus mistérios.

E lá ia o mestre como um raio

em luz de estrela transformado

a tocar o infinito, a descobrir os mundos inefáveis,

para cobrir de pó,

de pó de galáxias perdidas,

os cabelos longos do bom discípulo.

Era uma vez.

Era uma vez o aluno e seu mestre.

Era uma vez.

E o aluno indagava

indagava ao mestre

sobre os vermes que habitam

o vasto e impuro coração da terra,

os vermes que roem o coração dos homens.

E lá vinha o mestre como a raiz

em tentáculos de seiva transmudado

a arrancar das entranhas

das entranhas do lodo a razão de vida,

de vidas mil em átomos perdidas

para abrir os olhos, os olhos bons do bom discípulo

com exemplos raros de luz e sombra.

Era uma vez.

Era uma vez o aluno e seu mestre.

Era uma vez.

E foram vezes tantas que a luta atroz

entre o indagar e o responder

trouxe a luz ao velho mestre

que um dia o discípulo amado

ao ver em encanto o mestre já tornado

tomou a si o pó de estrelas

juntou ao peito o lodo impuro

e fez ao mestre a pergunta derradeira.

Era uma vez.

Era uma vez o mestre.

Era uma vez o discípulo.

Era uma vez.



(Ilustração: Ivan Bogdanov - the apprentice-1893)




20 de fev. de 2018

velas na cama






pedes que eu acenda velas

velas de luz e desejo

e que as espalhe pela cama



e coberta de pejo



usas todas as velas

todas elas,

para me queimares

sem nem imaginares

que de todas aquelas velas

só tu fazias-me queimar de desejo



15.2.2018


(Ilustração: Leonid Afremov - explosion of love)




19 de fev. de 2018

não faço jogo de palavras











não faço jogo de palavras

nem abuso de aliterações

contorno com graça as metáforas

e evito excessivas divagações



não que abomine tais recursos

no poetar e registrar meus pensamentos

apenas sigo o correr dos dedos no teclado

a buscar nas palavras as ideias mais claras

e as ideias mais claras nas palavras mais simples



que me desculpem os atrofiados do barroquismo

os que limam versos e garimpam rimas

prefiro tudo assim às claras

os versos tortos como se prosa fossem




14.1.2017





(Ilustração: Peter Fendi)

18 de fev. de 2018

despedida








depois do amor ainda nua

lânguida abotoas o sutiã

então eu sei que a lua

já cede lugar à manhã



(Ilustração: Auguste Renoir - baigneuse endormie)



17 de fev. de 2018

amigos







abro o in box do face

para conversar com você

e ele me adverte

vocês são amigos no facebook



sim

somos amigos no facebook

mas o que esse idiota desse aplicativo não sabe

é que somos amigos também na vida real

e mais do que amigos

somos amigos de cama e tesão

amantes há tanto tempo que já nem me lembro quanto

docemente amantes que se escondem nas tardes

de um hotel qualquer

despreocupados como folhas ao vento

deliciados como a brisa que balança uma rosa

amigos que se amam

que se comem como gatos vadios

em busca de um pouco de tesão e paz

em meio a um mundo que não se preocupa com isso





não sabe de nada essa rede social idiota

não sabe do que é feita a nossa amizade em camas redondas

de um hotel qualquer de tardes de qualquer estação

em misturas de fluidos e beijos e gozos

amizade que não tem cor nem tempo

que corre pelas pradarias de um quarto fechado

como o vento ou como gatos vadios

gemida e transida amizade pelos anos entretecida



24.1.2018



 (Ilustração: Georg Emanuel  Opitz) 




16 de fev. de 2018

Nudez






- Quero-te nua

como os lírios

do campo.

Sorriu e, num gesto amplo,

tirou os cílios.






(Ilustração: Ronni Wood - Sally Humphreys portrait)




15 de fev. de 2018

1964






Sob a égide da constelação estrelada,

nas noites claras de um sonho tropical,

figuras sinistras conspiravam.

E permitiram-lhes os deuses todos os poderes

para o bem e para o mal.



No entanto, enquanto no canto do céu,

a ponta da cruz indica o sul,

um canto de dor dobrava o corno da lua nova,

sob a égide da constelação estrelada.



Abril apenas o outono mediara,

e o inverno descia rigoroso:

nos cárceres da infâmia e do grotesco,

figuras famintas caídas no inferno

batiam dentes sob o açoite do torturador,



E o sonho da igualdade penhorada

jazia na tumba de falsas promessas

ao som das botas no asfalto negro,

sob a égide da constelação estrelada.




BH – 21.9.1978 /SP – 15.2.2018

(Ilustração: Fernando Botero)

13 de fev. de 2018

UM DIA, UM GATO









Chamas-me gato,

enquanto coleio pelo teu seio

e desço até teu ventre

e, antes que digas – entre –

só um pouco te arranho

e passeio e te arrebato

te dando um bom banho

de língua de gato. 



(Ilustração: Georg Emanuel  Opitz )

10 de fev. de 2018

Uns versos que havia de escrever









Ontem à noite em leito insone

pensei nuns versos maravilhosos que havia de escrever

assim que de posse de papel e tinta.

Um poema a deixar boquiabertos

todos que o lessem. Uma obra-prima a ser

transcrita em todas as antologias

de todas as editoras. A ser estudada por mestres

de todas as universidades e levadas entre as

folhas de cadernos e agendas de todos

todos os estudantes.

Versos tão fortes

e belos

e místicos

e reais

e profundos

míticos loucos verdadeiros emocionantes múlti

épicos e líricos que

alguém os colocaria a circular

no espaço virtual da internet. E lá, talvez,

na Austrália, no Japão, na Europa

ou na América (do Sul, Central e do Norte) morta,

um mísero escrevente brasileiro saudoso

da Pátria, em seu exílio voluntário,

esquecesse por um breve momento

o trabalho e o dólar suado de cada dia,

para lê-lo com ternura

e imaginar o sonho que estaria sonhando

se no Brasil ainda estivesse. E na tela

de um loucomputador

em mil pontos de luz transformado, o poema

ganharia o sentido de vidas só de esperanças vividas.

E comoveria. E abriria os corações a chamas

mais profundas de amor e solidariedade.

Pois é, mas a internet

e todos os mestres e alunos e expatriados

e apátridas – todos –

ainda vão ter de esperar pelo magnífico

poema que, à noite, em meu leito insone

imaginei.

Ao levantar-me após delírio,

o sol da manhã de outono desfizera

como gota de orvalho em folha morta

o poema.

E restou, apenas, na boca, o saibro amargo

da decepção.
São Paulo, 23.5.1995




 (Ilustração: Rick Beerhorst ) 

9 de fev. de 2018

Ventre








Não há nunca um dia quente

que não possa em chuva se tornar.



O sol em lua se transforma,

quando te amo em lusco-fusco.

O sol em lua se transforma

no mesmo instante que busco

o teu sonho em líquido aroma.

Faz de ti uma estranha rima

tão estranha quanto Roma.



Não há nunca um dia quente

que não possa em chuva se tornar.



Procuro, louco, teu sorriso

e encontro teu esgar,

não de dor, mas de prazer,

quando, enfim, meu paladar

não se cansa de trazer

teus encantos de chuva e mar.



domingo, 17 de agosto de 2003

(Ilustração: Jacqueline Secor)







8 de fev. de 2018

um brilho










um brilho apenas, de espantar,

de teus olhos já desatentos

à vida que não lhe pude dar,

um brilho, um brilho de doces alentos

desses teus olhos de espertas tramas

para esse que um dia ousou –

como qualquer idiota que sou -

teu amor buscar em outras camas.



segunda-feira, 31 de julho de 2006






(Ilustração: Lucien Freud - woman with eyes closed)



7 de fev. de 2018

Maris stella







Chamo-te estrela

do mar

mesmo sabendo

que só de longe

te apraz o mar.



Tens, entretanto,

no brilho do olhar

a dança profunda

das águas do mar.



Chamo-te estrela

do mar,

mesmo sabendo

seres etérea como o luar

com quem concorres

com as suaves nuances

de teu olhar.



Chamo-te estrela

mesmo sabendo

vires sempre

como o luar.


quinta-feira, 14 de agosto de 2003


(Ilustração: Paul Bond - Sanctuary)


6 de fev. de 2018

Ser ateu







Sou ateu. E não preciso nem gosto de justificar os motivos. Há tanta loucura nas religiões e na crença num deus, que basta estudar um pouco de História, uma pitada de Filosofia e outro tanto de Ciência para perceber que o Homem entrou num beco sem saída com suas crendices absurdas. 

Que tipo de Homem é esse que valoriza a morte e prega a destruição do semelhante com decretos obtusos de assassínio em massa, apenas porque há um livro entre ele e o outro – seja esse livro a bíblia ou o corão? 

Que religião é essa que adora um deus morto pregado ao madeiro, considerando-o o maior de todos os filósofos, quando suas palavras nada mais eram que repetições edulcoradas de velhos valores?

Que crença é essa que mistura a vida diária com preceitos antigos ditos por um profeta que buscava apenas dar um pouco de ordem ao seu tempo, à sua tribo, enfatizando regras absurdas de comportamento saídas de seu preconceito e de suas limitações?

A velha ordem deísta já deu o que tinha de dar: desrespeito ao ser humano - a si próprio e ao outro; guerras e desunião; estupidez e assassinatos; perseguições; desvalorização da vida; atraso científico; humilhações; construções de templos majestosos e cobertos de ouro enquanto os pobres que os construíam morriam de fome; mentiras em troca de bônus na eternidade; escravismo; bestialidades; genocídio de povos que professavam outras crenças; preconceitos; desrespeito à natureza e, sobretudo, obscurantismo quanto à própria sobrevivência do homem sobre a Terra.

Portanto, não são necessários argumentos científicos (que abundam em profusão!) para ser um ateu. Basta um olhar para a história do homem até os dias de hoje, com todas as mazelas que o jogaram num beco sem saída de violência individual e coletiva.




quarta-feira, 7 de maio de 2003






(Ilustração: Claude Monet -soleil levant-1872)




4 de fev. de 2018

O poeta e o camponês






Faz exatos 55 anos. Tinha 17 anos e frequentava o Cine Brasil, em Lavras, MG. O cinema era uma das poucas atrações para nós, naqueles anos sessenta. O cinema, há pouco tempo inaugurado, não era luxuoso, mas dava-nos um conforto que o velho cine Ipê já não apresentava: piso inclinado, poltronas macias, tela cinemascope, som perfeito. Logo após a protofonia de O Guarani anunciar que a sessão começaria, costumava-se apresentar algo como imagens aleatórias acompanhadas de um trecho de música clássica. Nossa preferida – minha e de meu saudoso amigo Augusto – era O Poeta e o Camponês, de Von Suppé. Isso foi há exatos 55 anos. Nunca, nunca mais ouvi essa música. E então, hoje, uma manhã de abril de 2017, ouvindo o rádio, a Cultura FM presenteia-me com essa peça musical, a abertura de O Poeta e o Camponês, de Von Suppé. O adulto de 72 anos despareceu num átimo, para ceder lugar ao jovem de 17, sentado numa poltrona do cine Brasil, nas Lavras de 55 anos atrás, ao lado de um amigo querido que já se foi e se foi quando ainda tinha muita vida para viver, e esse adulto recordou cada compasso de uma música perdida nos escaninhos da memória. Sim, nossa memória prega-nos essas deliciosas e imprevisíveis peças: quando imaginamos que um momento especial de vida, apenas um traço ou um ponto na linha do tempo, está perdido, bastam algumas palavras – o nome e o autor – e alguns compassos para que o passado remoto se torne palpável como a parede branca onde projeto, como uma tela de cinemascope, as imagens recuperadas, vividamente recuperadas, embaçadas embora por uma lágrima de saudade.




29.4.2017


(Ilustração: William Sidney Mount. Dancing on the Barn Floor, 1831)

3 de fev. de 2018

violoncelos









quero os sons graves de violoncelos

a ferir o breu numa noite sem lua

quero os sons graves de violoncelos

a acompanhar o passo marcado dos carregadores de esquife

numa noite sem lua coberta de nuvens

quero os sons graves de violoncelos

a esticar o meu prazer em camas sujas de motéis vagabundos

quando dolorosamente te direi que te amo

e noite sem lua coberta de nuvens caia sobre nós em gotas

de serena chuva num tempo sem amanhãs

os sons graves de violoncelos tecerão a cantata final

de meus passos e de nossa esperança e as noites

passarão tão frias e tristes que à lua só restará

deixar um pequeno rastro na cama redonda de nosso desejo


25.1.2018




(Ilustração: Jean Auguste Dominique Ingres - the valpincon bather)


2 de fev. de 2018

Pequena crônica sobre uma tradução





Gosto de traduzir alguns textos, principalmente poesia, sem compromisso. De forma praticamente bissexta. Quando descubro algum poema francês ou espanhol, não muito longo, que mexe com minha sensibilidade e provoca meus instintos de tradutor. Meu amigo Wagner, no entanto, é que é um craque. Quando preciso de um texto com uma boa tradução, desafio-o. E recebo de volta algumas pérolas, que publico no Trapiche dos Outros. Às vezes, um detalhe, uma palavra, um verso que não se enquadra no ritmo certo provocam longas discussões e debates e tentativas entre mim e Wagner, por mensagens de computador, já que ele mora atualmente no Rio e eu em São Paulo. Meus palpites são sempre muito pontuais, já que é ele o tradutor, e a ele cabe quase sempre o mérito final da empreitada, cuidadoso como é, principalmente com a metrificação. Eu acabo me preocupando mais com a semântica. Nosso último desafio foi o poema abaixo, de Raymond Queneau (França, 1903 - 1976). É um poema divertido, que o aproxima do poema-piada do Oswald de Andrade. É curto e não menos cheio de pequenas armadilhas semânticas e invenções do autor. Cheio de subentendidos. Deu um pouco de trabalho. Apresento a vocês o original, a tradução do Wagner e a minha versão sacana, bem sacana, como uma brincadeira (talvez de mau gosto para com o poeta) a que não resisti:



POÈME POUR LA POSTÉRITÉ, de Raymond Queneau



Ce soir,

Si j’écrivais un poème

pour la postérité?

fichtre

la belle idée

je me sens sûr de moi

j’y vas

et à la postérité

j’y dis merde et remerde

et reremerde

drôlement feintée

la postérité

qui attendait son poème

ah mais




POEMA PARA A POSTERIDADE , tradução de Wagner Mourão Brasil:




Esta noite, 

se eu escrevesse um poema 

para a posteridade? 

Caramba 

que boa ideia

sinto-me seguro de mim mesmo

aqui vou eu 

e à posteridade 

eu digo merda grandemerda 

e grandissimamerda 

bem-humoradamente eu enganei 

a posteridade 

que aguardava por seu poema



e como!



E eis a minha tradução sacana:



POEMA PARA OS CARAS DO FUTURO (minha versão):



Esta noite

e se eu fizesse um poema

para os manos do futuro?



porra

que ideia fudida



eu sou mais eu

e assim digo pros caras

vão à merda

duas vezes à merda

três vezes à merda



tirei o maior sarro

dos bostas do futuro

que esperavam sua rima



e aí?



(Ilustração: Giorgio de Chirico; Le Muse Inquietanti ~ 1916)