Gosto de traduzir alguns textos, principalmente poesia, sem compromisso. De forma praticamente bissexta. Quando descubro algum poema francês ou espanhol, não muito longo, que mexe com minha sensibilidade e provoca meus instintos de tradutor. Meu amigo Wagner, no entanto, é que é um craque. Quando preciso de um texto com uma boa tradução, desafio-o. E recebo de volta algumas pérolas, que publico no Trapiche dos Outros. Às vezes, um detalhe, uma palavra, um verso que não se enquadra no ritmo certo provocam longas discussões e debates e tentativas entre mim e Wagner, por mensagens de computador, já que ele mora atualmente no Rio e eu em São Paulo. Meus palpites são sempre muito pontuais, já que é ele o tradutor, e a ele cabe quase sempre o mérito final da empreitada, cuidadoso como é, principalmente com a metrificação. Eu acabo me preocupando mais com a semântica. Nosso último desafio foi o poema abaixo, de Raymond Queneau (França, 1903 - 1976). É um poema divertido, que o aproxima do poema-piada do Oswald de Andrade. É curto e não menos cheio de pequenas armadilhas semânticas e invenções do autor. Cheio de subentendidos. Deu um pouco de trabalho. Apresento a vocês o original, a tradução do Wagner e a minha versão sacana, bem sacana, como uma brincadeira (talvez de mau gosto para com o poeta) a que não resisti:
POÈME POUR LA POSTÉRITÉ, de Raymond Queneau
Ce soir,
Si j’écrivais un poème
pour la postérité?
fichtre
la belle idée
je me sens sûr de moi
j’y vas
et à la postérité
j’y dis merde et remerde
et reremerde
drôlement feintée
la postérité
qui attendait son poème
ah mais
POEMA PARA A POSTERIDADE , tradução de Wagner Mourão Brasil:
Esta noite,
se eu escrevesse um poema
para a posteridade?
Caramba
que boa ideia
sinto-me seguro de mim mesmo
aqui vou eu
e à posteridade
eu digo merda grandemerda
e grandissimamerda
bem-humoradamente eu enganei
a posteridade
que aguardava por seu poema
e como!
E eis a minha tradução sacana:
POEMA PARA OS CARAS DO FUTURO (minha versão):
Esta noite
e se eu fizesse um poema
para os manos do futuro?
porra
que ideia fudida
eu sou mais eu
e assim digo pros caras
vão à merda
duas vezes à merda
três vezes à merda
tirei o maior sarro
dos bostas do futuro
que esperavam sua rima
e aí?
(Ilustração: Giorgio de Chirico; Le Muse Inquietanti ~ 1916)